Título: O líder que não se tornou estadista
Autor: Nizar Messari
Fonte: Jornal do Brasil, 12/11/2004, Internacional, p. A9

Professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio

A morte de Arafat deixa o povo palestino órfão de sua maior liderança histórica. Desde 1959, quando criou a Al Fatah, Arafat começou a encarnar as esperanças, angústias e tragédias palestinas. Antes, vários líderes árabes diziam representá-los, mas pouco faziam neste sentido. O auge da tutela sobre a causa palestina foi em 1964, quando o presidente Nasser do Egito criou a Organização para Libertação da Palestina (OLP), sem a participação de Arafat, mas com indicados seus.

As crescentes ações da resistência palestina liderada pela Fatah, junto com a derrota de Nasser na Guerra dos Seis Dias em 1967, abriram o caminho para Arafat assumir a liderança da OLP em 1969, permitindo aos palestinos começarem a falar por si. Pode-se afirmar que o reconhecimento da OLP em 1974, pela Cúpula de Chefes de Estados da Liga Árabe, como único representante legítimo palestino, foi a culminação da afirmação palestina.

A identificação da causa com a pessoa de Yasser Arafat continuou nos anos 80, quando os cercos a Beirute e Trípoli levaram à expulsão de Arafat e do comando da OLP do Líbano. A volta por cima veio graças aos palestinos dos territórios ocupados, com o início da Intifada em 1987. A revolta trouxe a causa de volta aos holofotes, só que dessa vez com ampla simpatia da opinião pública internacional. Com isso, em 15 de outubro de 1988, Arafat declarou a criação de um Estado Palestino, com base nas resoluções 242 e 338 do Conselho de Segurança da ONU. A trajetória chegou ao auge com a assinatura dos acordos de Oslo nos jardins da Casa Branca em setembro de 1993. Finalmente, os EUA e Israel aceitavam a OLP e Arafat como interlocutores legítimos, e concordavam com um Estado palestino.

Mas o homem que foi pragmático e habilidoso o suficiente para negociar a paz não foi capaz de se tornar estadista. A perda de prestígio foi tanto no plano interno quanto no internacional. No interno, a falta de avanços concretos das negociações com Israel se juntaram a uma ineficiência administrativa latente e uma corrupção endêmica para afetar negativamente a imagem doméstica de Arafat. Para lidar com todas as insuficiências da administração, Arafat passou a contar de maneira crescente com aparelhos de segurança repressivos e competitivos entre se. O líder da luta pela libertação se tornou um líder desrespeitoso dos direitos humanos fundamentais, reprimindo a liberdade de expressão e de dissensão entre os palestinos.

No plano internacional, a corrupção endêmica na Autoridade Nacional Palestina (ANP) afastou os doadores ocidentais. Além disso, a ambigüidade marcou a política de Arafat com os extremistas. Apesar das repetidas condenações orais aos atentados contra civis israelenses, o líder mostrou pouca disposição para lidar dura e definitivamente com os radicais. Parecia possuir um discurso para a opinião pública internacional e outro - por vezes radicalmente oposto - para a local.

Concretamente, ou Arafat era incapaz de controlar os que rejeitavam o processo de Oslo, neste caso de nada adiantava negociar com ele, ou não queria controlá-los, o que o desqualificava como parte do processo de paz. Foram essas contradições que permitiram a Ariel Sharon e George Bush apresentar Arafat como o maior obstáculo para a paz no Oriente Médio e impor com isso seu isolamento e seu ostracismo.

A morte de Yasser Arafat pode se tornar uma oportunidade de retomada efetiva do processo. Basta os palestinos elegerem um líder mais propenso a negociar de maneira efetiva. Mas basta para isso também os EUA retomarem seu papel tradicional de mediadores. Finalmente, basta os israelenses mudarem sua liderança e sua maneira de lidar com o conflito. De qualquer modo, o desaparecimento do líder significa que a liderança Palestina está diante de um momento de escolhas difíceis: quem vai substituí-lo?

Marwan Barghouti é certamente o líder mais popular e mais carismático, mas está condenado a várias penas de prisão perpétua em Israel. Mahmoud Abbas foi primeiro premiê da ANP, designado como novo líder da OLP menos de seis horas depois da morte de Arafat. Devido à sua postura moderada em relação a Israel durante seu mandato de repmiê, tem a torcida discreta dos EUA e de Israel. Ahmed Qorei, o atual primeiro-ministro, tem a seu favor ser um homem de confiança de Arafat -apesar dos choques que os dois tiveram nas últimas semanas. Tem a seu favor também a administração habilidosa das conversações secretas de Oslo nos anos 90.

As negociações que ele tem liderado nos últimos dias com os grupos mais radicais podem, por fim, fortalecer sua candidatura. Mas como em todas as situações onde há uma polarização, nomes de terceiros podem aparecer. Faruk Qadumi, o responsável pelas relações exteriores da OLP, que assumiu a liderança da Al Fatah após a morte de Arafat, mas que foi um radical opositor dos acordos de Oslo, pode se tornar uma alternativa para certos grupos radicais. Mohamed Dahlan, que o então primeiro ministro Abbas quis nomear como responsável pelos aparelhos de segurança Palestinos, mas que não obteve a aprovação de Arafat, pode também ser alternativa. O fato de Dahlan ter acompanhado Arafat a Paris em sua última viagem pode ser revelador de alguma aproximação eles, e portanto, abrir portas para o futuro político de Dahlan.