O Globo, n. 32559, 28/09/2022. Opinião, p. 2

Todos a bordo, mas para onde?

Vera Magalhães


Impressionam a diversidade e o calibre dos apoios angariados por Luiz Inácio Lula da Silva nos últimos dias. Artistas, esportistas, economistas, educadores, políticos de diferentes vieses fizeram um movimento, inédito desde as Diretas Já, de endosso a um candidato ainda no primeiro turno, sem exigir contrapartida alguma em termos de participação no governo ou sequer de compromisso programático.

Se o movimento resultará em vitória de Lula no primeiro turno, é difícil dizer. Primeiro porque a dinâmica pela qual se forma a opinião no Brasil foi revolucionada pelas redes sociais. Depois porque a divisão do país é tal que o caráter plural do palanque pode até aprofundar o discurso de ressentimento antiestablishment fundador do bolsonarismo — uma espécie de seita impermeável aos valores antes consensuais da vida em sociedade.

Mas não se pode negar o sentido de urgência que emerge de discursos convergentes de pessoas que, até 2018, estavam em lugares muito diferentes, disputando a agenda e o projeto para o Brasil. Bolsonaro virou um denominador comum capaz de aplacar as diferenças, ao menos no momento.

Como se sabe que, em política, não se consegue suprimir as divergências por muito tempo, menos ainda em questões fulcrais de matéria econômica e definição de prioridades de governo (portanto orçamentárias), esse barco que tem praticamente todos a bordo precisará definir a rota em algum momento. Desviar do iceberg representado pelo bolsonarismo é o que dita a condução agora, em meio à tempestade, mas e depois, aonde se quer chegar?

Essa singela pergunta tende a levar a menos fotos com dedos em “L” ou discursos emocionados e a mais controvérsias sérias, algumas inconciliáveis, já no dia 1 da formação do futuro governo, caso as pesquisas se confirmem, e Lula seja eleito, em primeiro ou segundo turno.

O exemplo mais imediato diz respeito, claro, à política fiscal e econômica que o ex e eventual futuro presidente adotará. Num intervalo de uma semana, Lula recebeu o apoio de Henrique Meirelles, pai do teto de gastos, e André Lara Resende, um dos seus primeiros críticos entre os economistas do primeiro time, ainda na época em que a emenda à Constituição reunia mais apoio que hoje.

Lula não prometeu, nem os apoiadores cobraram, que todo mundo que está aparecendo na foto embarcado em sua candidatura terá espaço no futuro governo. Mas Meirelles não esconde que está pedindo a bola quando formula sugestões para praticamente todos os problemas postos à mesa do futuro presidente a partir de janeiro nas entrevistas que tem concedido.

Parece que não será trivial resgatar o ex-presidente do Banco Central nos dois governos Lula depois que ele foi ministro da Fazenda de Michel Temer, ainda hoje rotulado de golpista por ter articulado o impeachment de Dilma Rousseff.

Afinal, antes das adesões sorridentes a Lula nesta reta final, quem vem trabalhando na formulação do programa de governo do petista é a turma do PT raiz, com Aloizio Mercadante e os economistas da Unicamp à frente. Não será possível para quem chega desalojar esse pessoal da primeira classe para ocupar as melhores cabines do transatlântico agora que ele vai de vento em popa.

Caberá ao próprio Lula, com a ajuda importante de Geraldo Alckmin, aparar as arestas e acertar os aparelhos para indicar a navegação. Não seria prudente nem sensato imaginar que, com a declaração de voto de tantos e tão diferentes expoentes da sociedade, venha um cheque em branco para o petista gastar como bem entender.

Mesmo porque o governo que ele assumirá, se vencer, não lhe permitirá gastança nem falar em herança maldita apenas da boca para fora. O legado do bolsonarismo, boa parte dele envolta em sigilo de cem anos, esse sim promete ser um mar revolto a desbravar.