Valor Econômico, v. 20, n. 4973, 02/04/2020. Internacional, p. A11

Epidemia e crise expõem a falta de liderança em um mundo não-polar
Janan Ganesh 


Seria de mau gosto coroar o vencedor geopolítico da pandemia do coronavírus. Ainda bem, então, que não existe um.

Nenhuma potência mundial se sobressaiu nesses tempos. Os EUA não produziram nenhum Bretton Woods ou Guerra do Golfo nesta crise: não se reúnem aliados para ações coordenadas. Mesmo se o presidente americano, Donald Trump, tivesse a inclinação para algo do tipo, ele não teria a finesse.

O erro é apostar que uma mudança na Casa Branca em novembro faria os EUA recuperarem o velho talento para a liderança. O problema é mais profundo e esbarra na divisão subjacente que existe no país.

Os EUA podem permitir-se dois partidos brigando entre si. Mas não duas versões diferentes da verdade. A grave discrepância na forma como a pandemia do vírus é vista pelos EUA democrata e pelo republicano não é apenas um problema doméstico. Compromete a capacidade para que Washington lidere qualquer outro país.

Apesar de todo seu conhecimento diplomático, um Joe Biden presidente - o democrata aparece bem posicionado contra Trump nas pesquisas de opinião - se depararia com as mesmas limitações. Não há forma de o papel de liderança do país no exterior estar descolado de sua coesão interna.

Por outro lado, este também não é o “momento da China”. Pequim dilapidou a sua credibilidade em razão da falta de honestidade. A recriminação internacional quanto às origens do vírus está apenas começando.

Quanto à Europa, sua reação à pandemia agora vai da indecisão britânica à autocracia húngara. Não produziu nenhuma nova versão de Gordon Brown (ex-premiê do Reino Unido) durante o crash de 2008: nenhum líder com o espírito e o domínio político para amplificar o mediano poder de influência do país. Na esfera da União Europeia, voltamos à eterna dúvida se “uma união cada vez mais forte” significa incluir a emissão comum de dívida pública.

A pandemia, portanto, pelo menos nos prestou o serviço de expor o verdadeiro estado da situação geopolítica mundial neste início de século 21.

Está suficientemente claro, agora, o fato de que deixamos de viver em um mundo unipolar. Mas também não vivemos exatamente no mundo bipolar que tanto se comentou nos tempos recentes. Nas situações realmente importantes, a potência estabelecida é disfuncional demais para liderar, mas seus rivais carecem de capacidade ou da confiança dos demais para suplantá-la plenamente. Tampouco há uma terceira potência ou uma coalização de países com capacidade de persuasão.

Conforme-se, portanto, com o que devemos chamar de um mundo não-polar. E que pode durar um bom tempo. Nenhuma nação é suficientemente formidável para guiar as demais, mas há pelo menos duas demasiado grandes para que sejam guiadas pelas instituições internacionais. A resultante falta de controle passa despercebida na maior parte do tempo. Em crises, fica visível.

Há oito anos, o analista de risco político Ian Bremmer previu a atual situação em seu livro “O Fim das Lideranças Mundiais”. No mundo do “G-Zero”, escreveu o autor, “nenhum país isolado ou bloco de países tem influência para impor uma solução”. Muita conversa fiada sobre globalização sobrecarrega as estantes de livros de não ficção pelo mundo, mas torna-se cada vez mais difícil negar o prognóstico do analista.

Com sorte, uma vítima da crise será a pavorosa conversa prematura sobre uma “Segunda Guerra Fria”. O termo atribui mais estrutura ao mundo do que ele realmente possui. Sem dúvida, EUA e China são hostis entre si - agora ainda mais do que antes da pandemia.

Mas a questão da Guerra Fria é que ela não apenas confrontou uma potência contra a outra. Rearranjou boa parte do resto do mundo em blocos mais ou menos coesos. Deu forma às relações internacionais por meio século.

Talvez essa grande divisão planetária volte a ocorrer. Mas, por enquanto, o mundo está muito mais fragmentado do que isso. Não é o caso dos EUA estejam organizando a reação do Ocidente contra o vírus, e a China esteja liderando seu próprio lado igualmente coeso. Em vez disso, o que vemos são estratégias nacionais, produzidas nacionalmente. Até a coordenação regional é escassa.

E esse é o problema. Uma estrutura mundial problemática, liderada por potências problemáticas, como na Guerra Fria, pode ser melhor do que nenhuma estrutura. O radical do século 19 Alexander Herzen usava a metáfora da “viúva grávida” para descrever a calmaria entre eras históricas. Ou seja, uma era expirou, mas sua sucessora ainda está por nascer.

Esse meio tempo entre eras é tão tumultuado porque não há uma potência no controle. De forma pouco promissora, o que me vem à mente é a década de 30, quando a Pax Britannica estava em seus últimos momentos, mas EUA e União Soviética ainda não haviam assumindo o controle. Apesar de todas as agonias posteriores da Guerra Fria, esse mundo tinha um semblante de previsibilidade que não existia nos anos 30, livres para todos. O erro é pensar que estamos vivendo repetição dos tempos da Guerra Fria, quando esta crise evoca mais a situação dos anos 30.

“Horror vacui”, o pavor do vazio, era um antigo princípio artístico. Ele rejeitava a ideia do espaço vazio na pintura. A história não permite nem a possibilidade dessa escolha. De tempos em tempos, ela produz um vácuo. Se este vai ser tão anárquico quanto o anterior, será nosso ônus descobrir. / Financial Times