Valor Econômico, v. 20, n. 4973, 02/04/2020. Opinião, p. A12
Importância de alimentar crianças na pandemia
João Batista Oliveira
Por que falar em nutrição quando o assunto é coronavírus? E mais: por que o acesso adequado à nutrição adequada não deve se limitar a crianças matriculadas em creches? As respostas encontram-se adiante, bem como um apelo à ação das prefeituras e da sociedade civil.
As evidências são irrefutáveis: a longo prazo, a alimentação das gestantes e das crianças, especialmente as mais novas, tem muito maior impacto no desenvolvimento do que o acesso a creches - ou mesmo à educação em geral. Nada contra a educação - ela é a única forma de promover o desenvolvimento. Mas sobrevivemos no curto prazo. Este é o momento de assegurar às mães e às crianças - especialmente a todas as crianças mais pobres - acesso a alimentos nutritivos. Não importa se a criança está matriculada em creche.
Comecemos pelas evidências sobre os efeitos da má-nutrição. Menor desenvolvimento das estruturas e funções cerebrais, refletidas pelo tamanho do cérebro e menor estatura, está fortemente associado à má nutrição das mães e crianças. Parto prematuro, por sua vez, está fortemente relacionado à má nutrição. As deficiências nutricionais mais comuns também são bem conhecidas: baixo consumo energético-proteico, de ferro, de vitaminas. A ausência de ácido fólico nos períodos anteriores e iniciais da gestação também entra na lista dos vilões.
Também são robustas as evidências sobre o impacto da nutrição no desenvolvimento cognitivo. Estudos realizados com gêmeos mostram o impacto da nutrição recebida no peso e tamanho do cérebro. Também revelam diferenças de até seis pontos no QI (quociente de inteligência) atribuídas ao baixo peso ao nascer. Outras evidências decorrem de estudos que comparam populações que receberam ou não suplementos nutricionais durante algumas semanas - as diferenças chegam a oito pontos de QI.
Desde a década de 90, estudos também mostram a superioridade do aleitamento materno em contraposição ao leite formulado, que, apesar de atender às necessidades nutricionais, não fornece anticorpos nem se adapta às mudanças das condições do bebê. Há estudos consistentes que relacionam o aleitamento materno ao aumento do nível cognitivo - esse aumento pode atingir de seis a oito pontos de ganho permanente.
Também há evidências de impacto de melhorias nas condições de nutrição no desenvolvimento cognitivo de populações de vários países ao longo do último século. Em alguns países houve ganhos expressivos na estatura (e no tamanho do cérebro) decorrentes de mudanças significativas nos padrões alimentares.
O mais importante: vários estudos robustos sobre esses impactos detectam que os ganhos no desenvolvimento cognitivo se manifestam já a partir dos dois e dos quatro anos de idade, o que elimina outras explicações, inclusive a que poderia atribuir melhorias cognitivas aos efeitos da expansão e qualidade dos sistemas educativos ou do maior acesso a jogos, brinquedos e livros.
A par desses fatores, a presença de doenças como coqueluche e sarampo traz consequências graves para o sistema nervoso. Outras, como a malária, comprometem a absorção de nutrientes e, consequentemente, causam má nutrição.
Os desafios da nutrição de gestantes e crianças, em si, já seriam suficientes para um alerta. Mas cabe esclarecer e debater o mérito relativo de intervenções emergenciais neste momento de pandemia. O que é prioritário? Quais são as suas consequências? Manter a merenda escolar para os alunos matriculados? Ou assegurar o atendimento e alimentação às grávidas, recém-nascidos e suas mães?
Aqui de novo vale examinar as evidências sobre o impacto de intervenções na Primeira Infância no desenvolvimento cognitivo: os ganhos - especialmente os duradouros - se manifestam já a partir dos dois e dos quatro anos de idade. Isso significa duas coisas: primeiro, que intervenções na Primeira Infância têm potencial de impacto maior e mais duradouro do que outras intervenções. Segundo, que esse fato, abundantemente comprovado, sugere o modesto impacto de outras intervenções. Não que uma coisa elimine a outra, mas, sim, que uma coisa precede a outra e é mais importante e tem tempo e hora marcados para acontecer. Ou não.
Moral da história: o maior benefício que as autoridades podem proporcionar neste momento para o futuro das crianças, especialmente as mais pobres, é assegurar o acesso das gestantes às consultas de pré-natal, com total segurança, além de garantir uma alimentação adequada. E, para as crianças, especialmente para as mais novas, assegurar acesso a alimentos contendo os nutrientes adequados.
Cada município tem suas especificidades. Caberá à competência e à criatividade dos prefeitos criar meios para assegurar condições minimamente adequadas de saúde e segurança às famílias com crianças. Também é tempo de redobrar as campanhas em prol do aleitamento materno exclusivo no peito - pelo menos até os seis meses.
Também há espaço para a sociedade civil. Esclarecimentos e orientações seguras das associações especializadas - especialmente no pré-natal e na pediatria - são oportunas. A mídia, por sua vez, poderia divulgar iniciativas exitosas de comunidades e prefeituras que assegurem assistência pré-natal e alimentação adequada a todas as crianças. Aqui não há espaço para ideologias ou partidarismo políticos. Há espaço para quem tem competência e faz chegar pré-natal e alimentação adequada a quem precisa, num momento tão difícil.
E, quem sabe, haverá municípios em que, além da cesta básica com os nutrientes essenciais, as famílias também receberão uma dose regular de livros adequados e devidamente higienizados com orientações sobre como ler com as crianças.
Não sabemos quando as creches voltarão a reabrir. Mas sabemos que, se não cuidarmos agora das mães e crianças, elas vão estar em piores condições quando reabrirem as creches. E o coronavírus deixará profundas marcas em milhões de crianças - com ou sem creche - que terão sido deixadas de fora. Essas marcas podem ser positivas. A hora é agora.
João Batista Oliveira é presidente do Instituto Alfa e Beto.