Valor Econômico, v. 20, n. 4973, 02/04/2020. Especial, p. A14
Bancos esperam se redimir da imagem ruim da crise de 2008
David Crow
Stephen Morris
Laura Noonan
No dia em que o Lehman Brothers entrou com pedido de falência, em setembro de 2008, a primeira página do “Financial Times” exibia uma fotografia de John Thain, então executivo-chefe do Merrill Lynch. Nela, Thain entrava em seu carro depois de horas de debate no Federal Reserve Bank de Nova York (unidade regional do Fed, banco central americano) e parecia um homem que tinha olhado de perto para o abismo. Nos dias seguintes apareceriam mais fotos de banqueiros saindo de reuniões de crise com as autoridades, nos seus rostos pálidos um prenúncio do horror por vir.
À medida que o coronavírus se alastra e leva a economia global a uma paralisação quase total, os banqueiros voltam a circular pelos corredores do poder. No início de março, o presidente dos EUA, Donald Trump, convocou os executivos-chefes do Bank of America, do Citigroup e de outros grandes bancos para a Casa Branca, enquanto o ministro de Finanças britânico, Rishi Sunak, tinha reuniões e conversas por telefone com seus equivalentes no Reino Unido.
Mas desta vez é diferente, dizem os banqueiros. Em vez de serem advertidos por sua responsabilidade no desencadeamento da crise de 2008, eles estão sendo chamados a ajudar a distribuir os programas de estímulo sem precedentes, no valor de trilhões de dólares, destinados a salvar a economia global do colapso. Embora sejam os governos e bancos centrais que disponibilizarão grande parte do dinheiro, os bancos foram chamados a servir como “mecanismo de transmissão” para garantir que o auxílio chegue às empresas e consumidores mais necessitados.
O executivo-chefe do Citigroup, Mike Corbat, diz que o banco americano está em “contato diário” com a Casa Branca e as agências reguladoras, para “repassar informações... [sobre] o que observamos no mercado... o que está sob pressão”. Na França, o ministro das Finanças e o presidente de seu banco central agora conversam diariamente com Frédéric Oudéa, executivo-chefe do Société Générale, um banco que se tornara um pár em 2008, depois de um escândalo envolvendo um de seus traders.
“A diferença com relação a 2008 é que na época éramos vistos como o problema, e hoje todo mundo sabe que o problema é o vírus”, diz Oudéa. “Somos uma das atividades que tem que funcionar... nós somos os médicos da economia.”
Embora essa descrição vá chocar algumas pessoas, a diferença no tom das discussões entre governos, formuladores de políticas e bancos surpreendeu alguns veteranos da crise financeira. “Não quero citar o [ex-executivo-chefe do Goldman, Lloyd] Blankfein e dizer que fazemos ‘o trabalho de Deus’, mas pelo menos parece que estamos do lado dos bons desta vez”, diz um banqueiro que assessorou o governo do Reino Unido em 2008.
Se os bancos conseguirão manter essa confiança recém-encontrada dependerá em grande parte de sua capacidade de resistir ao coronavírus e suas consequências. Isso, por sua vez, depende se as reformas pós-crise financeira - que os bancos pressionam ferozmente para que em parte flexibilizadas - deixaram o sistema forte o suficiente para sobreviver. Os bancos parecem ter passado no primeiro teste: um período curto, mas pronunciado, de caos no mercado e o saque coordenado de centenas de bilhões de dólares em crédito por empresas em dificuldade com a crise. Uma autoridade governamental diz que, se tivesse de encarar mundial de 2007 já teria implodido. Jes Staley, executivo-chefe do Barclays, diz que “sob qualquer métrica, os mercados financeiros operaram e demonstraram uma volatilidade nunca vista antes” e aponta a “destruição significativa de valor que ocorre em conjuntos de ativos”. Mas, pelo menos até agora, o sistema está funcionando como deve. “É extraordinário que, com esse volume de instabilidade, não se tenham visto mais quebras de empresas de gestão de ativos.”
Ele acrescenta que os potenciais prenúncios de um colapso financeiro total ainda não ocorreram, tais como um fundo mútuo impedindo investidores de fazerem saques. “Há muitas coisas que se espera que aconteçam antes de que se comece a ver uma crise de verdade”, diz Staley.
Mas o verdadeiro teste da resiliência dos bancos e do sistema financeiro ainda está por vir. Parcelas enormes da economia mundial, de companhias aéreas a varejistas, viram suas receitas praticamente evaporarem. Muitas empresas e consumidores deixarão de pagar seus empréstimos, o que levará a uma série de perdas excruciantes para os bancos credores, que vão prejudicar sua lucratividade e abrir um buraco em seus balanços. Enquanto isso, taxas de juro ultrabaixas, introduzidas pelos bancos centrais para dar suporte à economia durante a pandemia, colocarão mais pressão sobre os lucros gerados por empréstimos.
“Tudo no mundo está em compasso de espera, e isso não pode se refletir no mundo financeiro”, diz Romain Boscher, executivo-chefe de investimentos em ações da Fidelity International. “Os bancos ainda são grandes demais para falir, mas também são cruciais demais para desaparecer.”
A agência de classificação de risco Standard & Poor’s alertou na semana passada que o setor bancário dos EUA - que gerou US$ 195 bilhões em lucros no ano passado - pode ter um prejuízo de US$ 15 bilhões nos próximos 12 meses. Analistas do Berenberg afirmam que os bancos americanos e europeus estão diante de uma queda média de 30% nos lucros este ano e no próximo. “Confrontadas com a redução das atividades, taxas de juro mais baixas por prazos mais longos, custos inflexíveis e perdas maiores com empréstimos, as perspectivas para os lucros dos bancos vão numa única direção”, escreveram em uma nota recente aos clientes.
Apesar desses ventos contrários, alguns executivos de bancos projetam confiança. Ana Botín, presidente-executiva do Santander, o maior banco da zona do euro, disse em uma conferência de serviços financeiros em março que havia a possibilidade de o banco ter uma queda de apenas 5% nos lucros este ano. O Santander também não espera ter impacto nos seus níveis de capital ou suas metas financeiras de médio prazo. Botín, que está na Madrid em quarentena e participou via um link de vídeo, disse que essas estimativas se baseavam em uma recessão “em forma de V” - um choque agudo seguido por rápida recuperação -, mas destacou que esse era apenas um dos possíveis cenários.
Mas alguns banqueiros dizem que esse tipo de discurso é prematuro e se aproxima do ilusório.
“Se alguém puder me dizer quando se acredita que [o vírus] será contido em nível mundial e voltaremos a uma economia global normalizada, então poderei dizer como será o ciclo de crédito”, diz um executivo de um banco mundial rival. “Mas como ninguém pode prever isso, acho difícil ver as pessoas saindo de casa e sendo tão confiantes.”
A profundidade das perdas de crédito depende do volume de risco que os países estão dispostos a compartilhar com o setor bancário. Governos e bancos centrais lançaram programas de estímulo fiscal e monetário em uma escala nunca vista desde a Segunda Guerra Mundial, que vão desde linhas de crédito lastreadas pelos bancos centrais até garantias de empréstimos e ajuda financeira a vários setores, entre eles o de aviação dos EUA. Um executivo de um banco suíço diz que, sem essa ajuda extraordinária, as reservas de capital dos bancos para absorver perdas “seriam como um guarda-chuva em um furacão”.
Um banqueiro que assessora o governo do Reino Unido - que reservou 330 bilhões de libras para garantir operações de empréstimos às empresas e uma linha de financiamento de títulos de curto prazo - diz que os planos não foram testados. Em especial, ele alerta que as garantias serão usadas apenas a empréstimos futuros. “É para dinheiro novo, não para todos os empréstimos que já fizemos e que terão problemas.”
Executivos de bancos também alertaram que novas regras contábeis na Europa - que forçam os bancos a fazer provisões para empréstimos de risco em data antecipada - agravarão o problema ao debilitar rapidamente os colchões de capital e inibir sua capacidade de emprestar bem no momento em que empresas e consumidores precisam de dinheiro. As autoridades compreendem essa preocupação e vêm adotando medidas para reduzir o impacto das novas regras. Na sexta-feira, órgãos reguladores concordaram em abrandar o impacto de regras parecidas nos EUA.
Mas o relaxamento de regras servirá apenas para ganhar tempo. “Se o mundo for pelos ares e toda essa intervenção governamental não funcionar, então os bancos sofrerão”, diz o banqueiro que assessora do governo britânico. “Será uma crise de perda de crédito à moda antiga, mas numa escala jamais vista.”
Mesmo que os bancos conseguirem absorver as perdas, algumas das medidas adotadas pelas autoridades governamentais afetarão o setor no longo prazo. Embora os cortes nos juros pelo Fed e pelo Banco da Inglaterra (banco central britânico) tenham sido decididas como uma medida temporária, a crise de 2008 mostrou que os bancos centrais podem ter problemas para aumentar as taxas de juros uma vez passado o choque econômico imediato. Enquanto isso, um forte crescimento nas receitas de corretagem dos bancos de investimentos no primeiro trimestre provavelmente proporcionará apenas um estímulo de curto prazo.
O diretor financeiro do Standard Chartered, Andy Halford, alerta que “taxas de juros incrivelmente baixas” poderão levar empresas e clientes de varejo a tirar seu dinheiro de contas que antes pagavam juros maiores pela manutenção de seus depósitos por períodos de tempo específicos. “Os bancos gostam de ter depósitos longevos que possam ser usados para sustentar empréstimos”, diz ele. “Se houver uma inclinação menor aos depósitos de dinheiro por períodos mais longos, haverá menos confiança na circulação do sistema.”
A crise da covid-19 pode ter dado aos bancos uma oportunidade para eles repararem sua imagem pública, mas também apresenta novos riscos de reputação. Enquanto mecanismo de distribuição da ajuda estatal, eles terão de realizar uma tarefa espinhosa: decidir quais empresas deverão receber assistência financeira e quais terão problemas para sobreviver, independentemente do vírus, e desse modo deverão ser deixadas à própria sorte. Uma autoridade governamental diz que “escolher os vencedores e os perdedores” poderá provocar uma reação política e pública de longo prazo contra os bancos.
“Queremos evitar qualquer risco moral... os governos não devem apenas distribuir dinheiro”, diz Lars Machenil, diretor financeiro do banco francês BNP Paribas. “Se uma companhia ou uma empresa aérea, por exemplo, estava em boa forma em fevereiro, então as garantias do governo devem servir apenas para ajudá-la a superar o período da covid-19.”
Corbat diz que os bancos precisam caminhar numa “linha fina” entre “ajudar o máximo que pudermos” sem “colocar em dúvida a solidez” dos bancos ou do sistema financeiro. “A última coisa que queremos ver é... nossos consumidores, nossas pequenas empresas e nossas grandes empresas saindo disso... com uma posição de endividamento maior ou mais precária.”
Embora muitos consumidores que tomaram empréstimos, ou parcelaram compras, tenham recebido pagamento das férias, alguns nunca conseguirão quitar seus empréstimos, o que poderá levar a uma onda de falências e reintegração de posses que testará a paciência da população.
“Esta crise não se originou o setor bancário, mas ele pode ser parte da solução. Mas se ele virar as costas, ela poderá engoli-lo”, afirma Paul Tucker, presidente do Systemic Risk Council, um grupo formado por ex-autoridades reguladoras, e que também já foi vice-presidente do Banco da Inglaterra. “Eles [os bancos] não podem trapacear com os clientes e precisam suspender dividendos e os abonos de alto escalão. Não é o momento de pôr seus interesses em primeiro lugar.”
Na terça-feira, os maiores bancos do Reino Unido se dobraram à pressão do Banco da Inglaterra e suspenderam todos os dividendos. A iniciativa chocou investidores e precipitou grandes quedas nos preços de suas ações, em especial as do HSBC, que viu seu valor de mercado cair quase US$ 10 bilhões em minutos, depois da abertura dos negócios ontem na Bolsa de Hong Kong.
Peter Orsa, um executivo do Lazard que foi diretor de orçamento da Casa Branca em 2009-10, no primeiro mandato do presidente Barack Obama, alerta que a confiança recém-adquirida entre os bancos e os governos poderá vir a sofrer pressões.
“Não quero chamar isso de um período de lua-de-mel, porque o que está acontecendo é terrível demais, mas a questão envolve um pouco de união e reconhecimento da boa vontade”, diz ele. No entanto, como os bancos serão forçados a decidir quais consumidores e empresas receberão apoio, a opinião pública e política poderá mudar. “O que acontece é que depois de seis meses essa dinâmica poderá começar a mudar - a reação não começa imediatamente.”
Assim como outras empresas, os bancos também enfrentam desafios logísticos enormes, com suas equipes dispersas, trabalhando de casa ou em licença pela doença. Uma quarentena na Índia, onde muitos bancos optaram por posicionar seus “cal centers”, está dificultando ainda mais a tarefa de lidar com o grande número de questionamentos dos clientes. Alguns bancos tiveram que suspender esforços de reestruturação, como o HSBC, que na semana passada disse que suspenderá a grande maioria das demissões anunciadas há apenas dois meses, quando disse que 35.000 empregos seriam eliminados. O custo de administração de um banco, que já é persistentemente alto, vai subir ainda mais.
Acima de tudo, a sobrevivência dos bancos e do sistema financeiro mundial dependerá da capacidade dos governos de conter a crise de saúde pública.
Brian Moninha, presidente executivo do Bank of America, disse que o pacote de estímulo de US$ 2 trilhões aprovado na semana passada pelo Congresso dos EUA é de “um tamanho e dimensão substancial, que a maioria de nós acredita que será suficiente para dar conta do recado”.
Mas ele reconhece o desafio maior: “O que eles estão fazendo na política fiscal e monetária... é impressionante, mas o que eles precisam realmente resolver é a crise de saúde.” (Colaboraram Sujeita Indap, de Nova York, e David Seoane, de Paris - Tradução: Lilian Carmona e Mario Zakarian)