Título: Banco da Providência
Autor: D. Eugenio Sales
Fonte: Jornal do Brasil, 26/11/2005, Outras Opiniões, p. A11
A 18 de novembro do corrente ano, um diário, em nossa cidade, publicou uma matéria sob o título ''Aluguel frustra planos do Banco da Providência''. Para agravar a situação do Banco da Providência, tem-se agora notícia de uma ação feita pelo Ministério Público Estadual contra o Banco, fundada numa denúncia anônima, sem qualquer identificação. E mais. Mesmo depois de respondida, minuciosa e detalhadamente, a denúncia infamante, o Ministério Público requisitou à Polícia Estadual que fossem ouvidos todos os citados na aludida denúncia, inclusive - é de pasmar! - o cardeal arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eusébio Oscar Scheid.
Após o XXXVI Congresso Eucarístico Internacional, em 1955, o cardeal Jaime de Barros Câmara e dom Helder Câmara criaram a instituição para atender aos necessitados. Um conselho curador contava com figuras as mais representativas no Estado. Tratava-se de uma entidade cujas atividades bem merecem o título de escola de dedicação aos irmãos carentes. Passou por várias crises, sempre superadas pela grandeza de seus objetivos e qualificação de seus dirigentes. Em uma das vezes fui falar com o presidente da República com o objetivo de obter solução para dificuldades da instituição e, como esperava, foi o impasse resolvido. É incrível que o anonimato esteja servindo para aplicar a justiça no Banco da Providência. E a ironia da vida: o banco ser obrigado a pagar à Prefeitura aluguel pela ocupação da Feira da Providência no Riocentro, quando os recursos obtidos são destinados também a atender os pobres que batem a sua porta em busca de remédios prescritos em receituários timbrados por postos de saúde da Prefeitura, remédios estes que eles não têm a mínima condição de adquirir.
Essas reflexões devem ser ampliadas pelas graves ocorrências contrárias ao bem público ou em favor de alguém. Por 30 anos que dirigi a instituição, posso afirmar diante de Deus que os bens destinados aos pobres chegaram ao seu destino. Resta-nos pedir a Deus que preserve o Banco da Providência.
O ensinamento social da Igreja insiste na destinação universal dos bens, após um determinado nível de propriedade privada. Dois fatores interferem no julgamento: o supérfluo e o grau de necessidade, por afetar a vida. Dentro desses dois parâmetros, podemos falar de doação livre ou obrigatória. Esse é o primeiro dado a ser tomado em consideração por um fiel, diante da crise do Banco da Providência.
Outro se fundamenta na prática da caridade, exigência da fé cristã. A Sagrada Escritura e o magistério eclesiástico, especialmente nessa última centúria, são de imensa riqueza para o cumprimento dessa doutrina. Entre os santos padres, nos primeiros séculos da cristandade, há expressões de grande firmeza nesse assunto. Lembro, apenas, uma frase de São João Crisóstomo, comentando a Primeira Epístola de São Paulo a Timóteo: ''Deus nunca fez uns ricos e outros pobres''.
A 17 de setembro de 1995, na homilia da missa em Johannesburgo, África do Sul, João Paulo II afirma: ''A verdadeira solidariedade é possível, porque todos nós pertencemos à única família humana. A nossa criação à imagem de Deus é o fundamento e a raiz de nossa dignidade humana'' (nº 4).
No início desta viagem à África, assinou, em Yaundé, Camarões, a 14 de setembro do mesmo ano, a exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in África, sobre a Igreja deste continente e sua missão evangelizadora, rumo ao ano 2000. A riqueza contida em suas 150 páginas é oferecida aos cristãos do mundo inteiro. Encontro passagens magníficas sobre o assunto abordado. João Paulo II reconhece a consciência crescente da interdependência entre homens e nações. Podemos acrescentar que, em nossa cidade, aumenta a preocupação com os problemas que afligem grupos humanos: a situação dos menores de rua, a fome, as drogas e outras deficiências. O fato de tantos reagirem contra as injustiças sociais e a violação dos direitos humanos revela uma tomada de consciência moral. O papa exorta-nos a dar uma resposta ''pela prática da virtude da solidariedade''.
Esse ensinamento, que é vivido na Feira da Providência, tem um fundamento bíblico-teológico. No Símbolo dos Apóstolos, dizemos: ''Creio na comunhão dos santos''. Como a Igreja é ''assembléia de todos os santos'', conforme o Símbolo de Nicéia, os fiéis formam um corpo. E o que pertence a um é comunicado aos outros. São Paulo, em sua carta aos romanos, ao instruir sobre o amor pelos fracos, usa esta expressão: ''Pois ninguém de nós vive, ninguém morre para si mesmo'' (Rm 14, 7). E mais explícito se torna a 1ª Epístola aos Coríntios (12, 26-27): ''Se um membro sofre, todos os membros compartilham o seu sofrimento; se um membro é honrado, todos os membros compartilham a sua alegria. Ora, vós sois o corpo de Cristo''.
A fraternidade cristã nos conduz à solidariedade, em um vasto e amplo campo de ação. O Catecismo da Igreja Católica (nº 1.941) abre-nos grande leque de atividades nesse campo: ''Os problemas socioeconômicos só podem ser resolvidos com o auxílio de todas as formas de solidariedade; solidariedade dos pobres entre si e dos ricos com os pobres, dos trabalhadores entre si, dos empregadores e dos empregados na empresa, solidariedade entre as nações e entre os povos.
Em nossa cidade, multiplicam-se as agressões à solidariedade. A carta encíclica Veritatis Splendor, de 6 de agosto de 1993 (nº 100), enumera muitos atos que atingem esta virtude e prejudicam gravemente a vida pública. E no campo político, a falta de transparência na administração, no uso justo e honesto do dinheiro público e assim por diante. Para o aperfeiçoamento na correção de falhas e na prática dessas virtudes, a Feira da Providência nos dá uma excelente lição de solidariedade e nos estimula a cumprir nosso dever de cristãos, em matéria de tal importância.
Ela, além da lição de solidariedade, busca concretamente vivê-la, angariando os meios para manter em funcionamento, por mais um ano, o Banco da Providência. Em 1994, atendeu a 57.298 pessoas necessitadas de nossa solidariedade. E esta instituição nos ajuda a praticar o bem, tornando-se penhor de graças divinas!