Valor Econômico, v. 20, n. 4974, 03/04/2020. Opinião, p. A15

As duas pandemias

Robert Shiller


Estamos sentido os efeitos de ansiedade não apenas de uma pandemia, mas de duas. A primeira é a pandemia da covid-19, que gera ansiedade porque nós, ou as pessoas a quem amamos, em qualquer lugar do mundo, podemos em breve ficar gravemente doentes ou mesmo morrer. E a segunda é a pandemia de ansiedade sobre as consequências econômicas da primeira.

Essas duas pandemias estão inter-relacionadas, mas não são o mesmo fenômeno. Na segunda pandemia, as narrativas de medo se disseminaram de forma tão viral que muitas vezes pensamos nelas o tempo todo. O mercado acionário vem caindo como uma pedra, aparentemente em reação às notícias sobre como a covid-19 pode exaurir o valor do que poupamos ao longo de toda a vida, a menos que façamos algo. Mas, diferentemente da própria covid-19, a fonte de nossa ansiedade é que não temos certeza sobre o que se deve fazer.

Não é uma notícia nada boa quando há duas pandemias em andamento simultaneamente. Uma pode alimentar a outra. Fechamento de empresas, disparada do desemprego e perda de renda alimentam a ansiedade financeira, o que, por sua vez, pode impedir pessoas desesperadas por trabalho de tomarem as precauções adequadas contra a disseminação da doença.

Além disso, também não é uma notícia nada boa quando os dois contágios são, de fato, pandemias mundiais. Quando uma queda de demanda está confinada a um país, a perda é parcialmente disseminada no exterior, enquanto a demanda pelas exportações do país não diminui muito. Desta vez, contudo, essa válvula de segurança natural não funciona, porque a ameaça de recessão paira sobre quase todos os países.

Muitas pessoas parecem supor que a ansiedade financeira não é nada mais do que um subproduto direto da crise da covid-19 - uma reação perfeitamente lógica à pandemia da doença. Mas situações de ansiedade não são lógicas. A pandemia de ansiedade financeira, disseminando-se por via das reações de pânico aos declínios nas cotações, tem vida própria.

Os efeitos da ansiedade financeira no mercado acionário podem ser mediados por um fenômeno que o psicólogo Paul Slovic, da Universidade de Oregon, e seus colegas chamam de “heurística do afeto”. Quando as pessoas estão emocionalmente descontentes por algum evento trágico, elas reagem com medo mesmo em circunstâncias nas quais não haveria motivo para medo.

Em estudo conjunto com William Goetzmann e Dasol Kim, concluímos que o poder de discernimento das pessoas quanto às chances de crashs do mercado acionário como os de 1929 ou 1987 é afetado quando acontece algum terremoto nas proximidades. A avaliação dos consultados sobre a probabilidade de um crash foi bem maior nos 30 dias seguintes a algum terremoto substancial cujo centro estivesse dentro de um raio de 30 milhas (48 quilômetros). Isso é a heurística do afeto em pleno funcionamento.

Poderia ser ainda mais lógico esperar uma queda no mercado acionário provocada pela epidemia de alguma doença do que por um terremoto recente, mas talvez não um crash da magnitude vista recentemente. Se houvesse a crença generalizada de que um tratamento pudesse limitar a intensidade da pandemia da covid-19 em questão de meses, ou mesmo que pandemia duraria um ano ou dois, isso indicaria que o risco no mercado acionário para o investidor de longo prazo não é tão grande. Você poderia comprar e ficar esperando.

Mas o contágio da ansiedade financeira funciona de forma diferente do contágio de uma doença. É alimentado, em parte, pelas pessoas percebendo a falta de confiança dos outros, refletida em quedas nos preços e na reação emocional dos demais aos declínios. Bolhas negativas nos preços surgem quando as pessoas veem os preços caindo e, ao tentar explicar por que, começam a amplificar as histórias que explicam o declínio. Os preços, então, caem nos dias subsequentes e continuam caindo.

Observar as sucessivas desvalorizações nas ações cria uma forte sensação de arrependimento naqueles que não venderam, que se soma ao medo de você poderia acabar vendendo a preços ainda mais baixos. Esse arrependimento e medo alimentam o interesse das pessoas nas narrativas das duas pandemias. O rumo que o mercado segue a partir daí depende de sua natureza e evolução.

É possível ver isso ao considerar que o mercado acionário nos Estados Unidos não desabou em setembro e outubro de 1918, quando os meios de comunicação começaram a cobrir a pandemia da gripe espanhola, que acabou provocando a morte de 675 mil pessoas nos EUA (e de mais de 50 milhões no mundo). Em vez disso, os preços mensais no mercado dos EUA seguiram uma tendência de alta entre setembro de 1918 e julho de 1919.

Por que o mercado não teve um crash? Uma possível explicação é que a Primeira Guerra Mundial - que se aproximava do fim, depois de última grande batalha, a Segunda Batalha do Marne, em julho-agosto de 2018 - tirou espaço da história sobre a influenza, especialmente depois do armistício em novembro daquele ano. A notícia da guerra provavelmente era mais contagiosa do que a história da gripe.

Outro motivo é que a epidemiologia estava apenas em sua infância na época. Surtos não eram tão fáceis de prever e a população não acreditava plenamente no conselho dos especialistas, de forma que a adesão às medidas de distanciamento social era “relaxada”. Além disso, havia a crença geral de que crises econômicas eram crises bancárias e, na ocasião, não havia uma crise bancária nos EUA, onde o Sistema do Federal Reserve, que havia criado a estrutura do banco central americano poucos anos antes, em 1913, era amplamente proclamado como garantia de eliminação desse risco.

Mas talvez a razão mais importante para a narrativa financeira ter ficado silenciada durante a epidemia de influenza em 1918 é que bem menos pessoas detinham ações há um século e poupar para a aposentadoria não era uma preocupação como hoje, em parte, porque as pessoas não viviam tanto tempo e, caso vivessem, era mais frequente dependerem da família. 

Desta vez, é claro, é diferente. Vemos corridas às compras nos mercados locais, em contraste com 1918, quando a escassez pelos tempos de guerra era uma ocorrência regular. Com a Grande Recessão tendo ficado para trás apenas há pouco tempo, certamente ainda estamos bem conscientes da possibilidade de grandes declínios no preço dos ativos.

Prever o mercado acionário em tempos como esses é difícil. Para fazê-lo bem precisamos prever os efeitos diretos na economia da pandemia da covid-19, assim como todos os efeitos psicológicos e reais da pandemia da ansiedade financeira. As duas são diferentes, mas inseparáveis. (Tradução de Sabino Ahumada)

Robert J. Shiller é professor de economia na Yale University e autor de Narrative Economics: How Stories Go Viral and Drive Major Economic Events. Copyright: Project Syndicate, 2020.