Título: Nepotismos e precatórios à parte...
Autor: Fernando Filgueiras
Fonte: Jornal do Brasil, 29/11/2005, Outras opiniões, p. A11

No dia 23 de novembro último, foi publicado um artigo, nesta página, chamando a atenção para a questão da moralidade administrativa e o instituto dos precatórios, num claro sentido de criticar a decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de proibir o nepotismo em todas as instâncias do Poder Judiciário. É vexatório para o Poder Judiciário não executar a intervenção federal sob o Poder Executivo, nos âmbitos federal, estadual e municipal, tendo em vista a não contabilizada dívida dos precatórios. Não resta dúvida que os precatórios representam uma vergonha nacional.

Todavia, misturar ''alhos e bugalhos'' e comparar a questão do nepotismo com o vexame dos precatórios, fogem ao bom senso esperado dos operadores do direito. O CNJ não errou o alvo, até porque existem vários alvos a serem acertados, dentre eles, como muito bem mirou o ministro Nelson Jobim, o nepotismo nas instâncias judiciárias. Outros alvos que também devem ser mirados pelo CNJ são: a lentidão, o excesso de recursos judiciais e ''extrajudiciais'', sua falta de acesso (apesar das melhorias introduzidas com os Juizados Especiais), a falta de sensibilidade das instituições judiciárias para o problema carcerário e, também, o problema da corrupção. No que tange a esse último problema, o CNJ fica de frente ao problema da moralidade, como define o artigo 37 da Constituição Federal, que obriga a todos os órgãos da administração pública direta e indireta, de qualquer dos Poderes do Estado, a obedecer aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência.

A resolução número 07 do CNJ não representa uma ''caça às bruxas'', e muito menos está relacionada ao problema da imoralidade dos precatórios. A par disso, procura regulamentar um problema histórico e premente de solução no Brasil, que é o nepotismo. O conceito de nepotismo está relacionado às idéias de favores, proteção e auxílio a membros de grupos familiares, os quais levam suas relações de parentesco aos domínios do Estado. São práticas que procuram favorecer parentes quando alguém está de frente a uma oportunidade, ou seja, é o favorecimento a parentes, por parte de quem tem algum tipo ou grau de poder, seja no sentido político, econômico ou social. O favorecimento de parentes não é compreendido ou valorado de modo negativo por quem assim age ou por aqueles que são beneficiados por essa prática. Ao contrário disso, do ponto de vista da moralidade do poder familiar e pessoal, como notou Pierre Bourdieu, estudando o caso da Argélia, o nepotismo é visto como uma virtude, pois representa um elemento de solidariedade e auxílio mútuo aos parentes. Pela lógica dos ''modernos'', contudo, é um ato que deve ser repreendido, pois defronta os princípios gerais da administração pública.

O tiro da resolução número 07 do CNJ foi certeiro, porque o nepotismo favorece a constituição de configurações de poder, que elevam os interesses privados e faz com que o domínio público se torne uma coleção de ilhas de domínios particulares. Ou seja, o nepotismo do Judiciário, o arauto do espírito republicano, a partir da Constituição de 1988, favorece as práticas de corrupção e a ineficiência burocrática. É verdade que nepotismo e corrupção não são sinônimos, porque a segunda representa esquemas mais complexos do que as relações de parentesco no poder público. Entretanto, estudos comprovam que o nepotismo favorece a prática de corrupção no poder público, porque é um meio do corruptor criar uma rede de relações pessoais, que lhe permite fazer uso particular do bem comum. Ademais, o nepotismo vai de encontro ao princípio da eficiência burocrática, que, como muito bem definiu Max Weber, baseia-se na competência, na impessoalidade e na lei. Em resumo, é uma afronta aos ideais de república que emergem na sociedade brasileira a partir de 1988.

Diante destas razões, e mesmo pelo fato de a emenda 45 da Constituição Federal, no seu artigo 103-B, parágrafo 4º, inciso II, assegurar ao CNJ o poder para zelar pela observância do artigo 37, referido acima, o nepotismo deve ser alvejado do Poder Judiciário, porque, como o precatório, é uma das mais vistosas raízes de seus males, como muito bem definiu nosso articulista. Nepotismos e precatórios à parte, o que está em jogo é uma ponderação de princípios relacionados aos preceitos burocráticos da administração da justiça no Brasil, que muito bem deveria servir de sinal para os Poderes Legislativo e Executivo seguirem a mesma trilha. Desse modo, pela resolução número 07 do CNJ, o Judiciário cumpre seu papel de regente republicano no Brasil, apesar dos obstáculos que enfrenta pelas mudanças na cultura jurídica. Nepotismos e precatórios à parte, espera-se o bom senso.