Valor Econômico, v.
20, n. 4975, 06/04/2020. Brasil, p. A5
“É urgente conter o
vírus nos grotões”
Entrevista: Adriano Pereira
Júnior, Ex-Secretário nacional de Proteção e Defesa Civil do
Ministério da Integração Nacional (hoje Desenvolvimento Regional)
Foi nas academias militares que o general Adriano Pereira Júnior descobriu o
significado de grotão, mas foi em Curupá, distrito do município de Alto
Parnaíba, na divisa entre Maranhão e Piauí, que a palavra ganhou vida. Depois
de um acesso por trilha, encontrou um povoado com 20 casas, de madeira ou
taipa, onde as famílias vivem de subsistência, sem escola, posto de saúde
ou mesmo veículos para transportar doentes.
Comandante Militar do
Leste entre 2010 e 2012, foi como secretário nacional de Proteção e Defesa
Civil do Ministério da Integração Nacional (hoje Desenvolvimento Regional),
entre 2013 e 2016, que o general ampliou o radar sobre os grotões.
Na reserva desde 2014
e longe de cargos públicos há quatro anos, Pereira Júnior continuou a
visitá-los em suas expedições em veículos com tração em quatro rodas, rodando
mais de 20 mil quilômetros por ano.
Foi com essa lente que
o general se debruçou sobre as medidas governamentais, da União, Estados e
municípios para concluir que o combate ao coronavírus no Brasil começou a
ser feito para mitigar a doença nos municípios onde já há casos e esqueceu da
prevenção naqueles que ainda não foram atingidos.
De seu apartamento, em
Brasília, do qual não sai há três semanas, na estrita observância do
confinamento, o general de 72 anos falou, por telefone, ao Valor: “São mais de
5 mil municípios sem casos e que assim têm que continuar, porque a dificuldade
de combater a doença nesses lugares, em que falta hospital, ou até mesmo, um
posto de saúde é gigantesca, afirmou.
A seguir, os
principais trechos da entrevista:
Valor: Como o senhor
vê os riscos de o coronavírus chegar ao grotão?
Adriano Pereira
Júnior: Com preocupação. Ao contrário dos países europeus, o Brasil tem imensa
extensão territorial e, com exceção de algumas áreas, as cidades ficam
afastadas por distâncias superiores a cem quilômetros. Tenho
estudado as medidas e não tenho visto ações que levem isso em consideração na
montagem nas estratégias de combate para impedir seu avanço em áreas limpas. A
China manteve a restrição do vírus apenas à província de Hubei, adotando
medidas que contiveram a propagação da doença. O Brasil já tem casos
de contaminação em todos os Estados. A epidemia já atingiu um patamar que
não permite, em nível estadual, adotar medidas de contenção. O mesmo não
acontece nos municípios. Há 5.131 municípios que ainda não foram atingidos pela
pandemia. São mais de 100 milhões de brasileiros que vivem em áreas sem a
presença de coronavírus. No mapa das ocorrências, a maioria está
concentrada nas regiões Sudeste, Sul e Nordeste, sendo que há uma imensa área
com muito poucas ocorrências.
Valor: E o que
precisaria ser feito para evitar que essas regiões fossem atingidas?
Pereira Júnior: Tenho
escutado muito que no Brasil já perdemos a oportunidade de adotar medidas de
contenção e por isso temos que empregar as de mitigação. Que Brasil perdeu a
oportunidade? Nosso país tem uma diversidade muito grande, é a soma de vários brasis.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) preconiza que a primeira fase deve
ser marcada pela contenção, para evitar que o vírus entre e se espalhe na
comunidade. O Brasil já está na fase seguinte, da mitigação, que é adotada
quando o país já tem transmissão comunitária, mas há mais de 5 mil municípios
em que não há casos da doença e estão esquecidos. O que é menos doloroso,
fazer o isolamento de pessoas em suas residências ou isolá-las no perímetro de
seus municípios?
Valor: O dinheiro
curto não justifica a prioridade para as regiões mais densamente povoadas?
Pereira Júnior: Mas
são medidas baratas que esses municípios necessitam, bloqueios e kits para
testes, justamente para evitar que a doença se espalhe por municípios sem rede
hospitalar e acabe sobrecarregando o sistema de saúde dos grandes centros do
país. Se já está difícil cuidar dos residentes nos municípios infectados,
podemos imaginar as dificuldades com que nos defrontaremos se forem adicionados
a uma situação de risco mais 100 milhões de pessoas que vivem naqueles que
ainda não têm casos registrados. Pegue o Estado de Goiás, por exemplo.
Talvez os dados já tenham mudado, mas no último balanço que vi, o Estado tem 12
municípios que abrigam 3,6 milhões de pessoas com casos notificados e 234
municípios que somam uma população de 3,4 milhões sem notificações. Se o vírus
se espalhar para todo o seu território, o governador terá não mais de se
preocupar com 12, mas com todos os 246 municípios e 7 milhões de pessoas.
Valor: O fato de serem
comunidades mais isoladas não acaba servindo de barreira de proteção?
Pereira Júnior: Se as
cidades de pequeno e médio porte das quais esses povoados são dependentes não
tiverem a covid-19, a doença não chegará lá. Mas se tiverem, vai se espalhar
nos grotões com certeza. E pode dizimar muitas comunidades remotas do Norte,
Nordeste e Centro-Oeste em que o acesso, principalmente em período de chuva,
fica intransitável.
Valor: Mas os
governadores não estão bloqueando estradas?
Pereira Júnior: Os
bloqueios são mais interestaduais do que entre os municípios. E também tem
que fazer testes. Testou a população e não deu positivo, isola e deixa a cidade
funcionar normalmente. Realidades diferentes exigem abordagens distintas. São
Paulo tem 645 municípios e 45 milhões de habitantes em uma área de 248 mil
quilômetros quadrados, com intensa mobilidade social e econômica entre
seus municípios e 1.517 casos de contaminação com 113 óbitos. O Mato
Grosso tem 141 municípios e uma população de 3,5 milhões numa área de 903 mil
quilômetros quadrados com baixa mobilidade entre os municípios e 18 casos
registrados. São realidades completamente diferentes. No caso de Mato Grosso
tem que se pensar em estratégias para isolar pessoas nos quatro municípios
afetados e estratégias para isolar o vírus, evitando que ameace a vida dos
habitantes dos 137 municípios que ainda estão livres da contaminação.
Valor: O bate-cabeça
no governo federal não prejudica?
Pereira Júnior: Falta
uma ação coordenada, mas o problema não é só o presidente. O que restringe
a atividade econômica são as medidas de mitigação, mas se você faz a contenção
nem vai ter o que mitigar. As cidades vão poder funcionar normalmente. As
autoridades locais se preocupam mais em preparar hospitais do que em prevenir
que mais gente precise deles.
Valor: Massificar os
testes exigiria um investimento muito grande. A muito custo, o Ministério da
Saúde conseguiu comprar 500 mil kits. Não é inviável enviar testes para 5.570
municípios?
Pereira Júnior: A
pergunta que tem que ser feita é se não é inviável arrumar leitos hospitalares
para municípios ainda livres do vírus onde moram mais de 100 milhões de
brasileiros. Basta olhar para as dificuldades que enfrentamos hoje, para
aumentar a capacidade de atendimento dos hospitais em leitos de UTI e de
respiradores. Se a contaminação não for contida, os municípios que serão
atingidos são os mais carentes de instalações hospitalares e de profissionais
da área médica. Como vamos atender essa demanda? Serão trazidos para os grandes
centros? Haverá disponibilidade suficiente na rede hospitalar e nos hospitais
de campanha instalados pelos governadores nas capitais? Serão instalados
hospitais de campanha nos novos municípios? Teremos equipamentos e pessoal,
médicos e enfermeiros, suficientes para trabalharem nessas áreas? Se houve
incompetência na contenção nos grandes municípios, essa inépcia não deve se
espalhar para os pequenos. Ainda dá tempo.