Título: Iguaçu e Iguazu
Autor: José Sarney
Fonte: Jornal do Brasil, 02/12/2005, Opinião, p. A15

Em Iguaçu demos o primeiro arranco. Em Iguazu, 20 anos depois, celebramos os resultados. Diz a sabedoria popular que as semanas passam muito devagar e os anos correm mais rapidamente que as águas do vertedouro de Itaipu. Em 1985, com apenas seis meses de presidência, eu estava com Raúl Alfonsín assinando a Ata de Iguaçu, que consagrava uma vontade política de mudarmos a história do continente sul-americano, com fim das divergências Brasil e Argentina, passando de uma atitude de confrontação para uma política de cooperação. Nossas gerações herdaram as hipotecas das concepções do século 19 de que quem dominasse a Bacia do Prata dominaria o coração da América do Sul, no rastro das lendas dos lagos de ouro dos reinos do Preste João. Era necessário para ingressarmos na chamada pós-modernidade que se criasse um espaço econômico, político e cultural compacto, para chegarmos a um mercado comum, nos moldes do exemplo europeu. E esse objetivo teria de passar por uma aliança estratégica entre Brasil e Argentina. A Ata de Iguaçu é o DNA desse projeto. Ele seria impossível sem a visão de Raúl Alfonsín, enfrentando problemas internos, então agudos, nas Forças Armadas e na controvérsia sobre Itaipu. É claro que, no Brasil, também tínhamos problemas, sobretudo na desconfiança sobre a área nuclear, na qual a Argentina estava 10 anos à frente do Brasil. Demos ao mundo um exemplo efetivo de lutar pela paz, quando firmamos nosso acordo de cooperação nuclear, coroado com a visita que fiz a Pilcaniyeu, e com a visita de Raúl Alfonsín à Aramar, onde a nossa Marinha fez um trabalho notável com o domínio da tecnologia do enriquecimento do urânio. Brasil e Argentina abriam suas caixas pretas e passamos a conjugar esforços para o aproveitamento pacífico da energia nuclear. Depois de Iguaçu veio o Tratado de Buenos Aires, de 1988, que é a face jurídica do Mercado Comum, e por último o Tratado de Assunção, de 1991. Nestes vinte anos o Mercosul teve seus altos e baixos. Avançamos muito e tivemos muitos acertos, e podíamos ter evitado alguns erros. É animador o fato de que nenhuma de suas crises tenha tido origem na área da vontade política. Todas nasceram na área econômica, com empresas e setores acostumados ao protecionismo sem se dar conta de que o mundo atual é de competição, onde precisamos de condições de disputar mercados com eficiência. Isto ocorreu lá e cá. Nas comemorações destes 20 anos, em Puerto Iguazu, no último dia 30, ouvimos de Lula a afirmação de que ''o rio da Prata, por mais largo que seja, ficou pequeno com a vontade argentina e brasileira pela integração''. Kirchner, para mostrar o nível de nossas relações, disse que ''em breve nossas fronteiras serão apenas referências cartográficas''. Com estas palavras que ouvimos, Alfonsín e eu ficamos felizes. Nós realmente tínhamos mudado a história da América do Sul, e a integração Brasil e Argentina está feita. Era tudo que queríamos.