Valor Econômico, v. 20, n. 4975, 04/04/2020. Opinião, p. A13
Gastar, mas sem que BC financie o Tesouro
Eduardo Zilberman
Mundo afora tem havido enorme esforço fiscal em resposta aos desafios da covid-19. Boa parte desse esforço envolve gastos com saúde para o enfrentamento da crise, transferências e crédito subsidiado para que famílias e firmas façam a travessia. A indagação natural, após anos debatendo austeridade fiscal depois da crise de 2008-9, é como esse déficit fiscal será financiado. Tendo em vista a precariedade das contas públicas em muitos países, alguns economistas proeminentes no cenário internacional têm proposto que o Banco Central banque a conta. No Brasil, onde o terreno é fértil para proliferação deste tipo de debate, tal solução pode ter efeitos desastrosos.
O Banco Central compraria títulos emitidos pelo Tesouro, creditando o montante equivalente na conta do Tesouro no BC para que o governo arque com os gastos e transferências fiscais, porém consideraria a dívida subjacente aos títulos do governo como liquidada (ou, analogamente, manteria esses títulos indefinidamente em seu balanço, transferindo os juros recebidos para o Tesouro). Esta anulação da dívida e a compra direta do Tesouro são o que fazem essa operação ser diferente do afrouxamento quantitativo usual.
No debate internacional, essa política ficou conhecida como “helicopter money” (dinheiro de helicóptero), em alusão a um experimento hipotético concebido por Milton Friedman, que nunca chegou a endossá-lo. A maioria da profissão não endossa. Mas em contextos de demanda agregada reprimida, dívida pública alta, deflação e taxa de juros próxima de zero, vozes relevantes, como a de Ben Bernanke, já aventaram essa possibilidade.
Em parte dos países desenvolvidos, onde as taxas de juros de curto e longo prazo estão próximas de zero, moeda (definida aqui como papel-moeda em circulação, reservas bancárias e depósitos à vista) e títulos do governo são substitutos próximos. Dada a solidez das suas instituições, na crise, há uma enorme demanda por seus ativos, inclusive moeda. Embora o risco durante a crise seja deflacionário, mesmo nesses países financiar o esforço fiscal com criação de moeda pode gerar alguma inflação depois que a crise da covid-19 passar.
Mas sob a hipótese de que o Banco Central seguiria independente e se comprometeria a restabelecer a política monetária usual depois da crise, seus proponentes acreditam que aceitar momentaneamente ou combater uma eventual inflação posterior seria menos custoso do que implementar um pacote de austeridade fiscal.
Essa ideia é particularmente atraente para países da zona do euro que passaram por uma crise de dívida soberana recentemente, e seguem com as contas fiscais pressionadas. Coincidentemente, dois desses países, Espanha e Itália, estão sendo bastante afetados pela covid-19. É bom lembrar que, na zona do euro, cada país é responsável por sua política fiscal, inclusive emissão de títulos. Mas seria o Banco Central, supranacional, o responsável (supondo que o arranjo institucional venha a permitir) pela criação de moeda para financiar o déficit fiscal.
Neste caso, a criação de moeda redistribuiria o ônus fiscal do combate à crise da covid-19, beneficiando países onde, por conta da situação precária, o custo de se endividar já é bastante alto. Ao mesmo tempo, a credibilidade institucional e o compromisso com inflação baixa de países centrais na zona do euro, como a Alemanha, substanciaria a hipótese de reversão à política monetária usual depois da crise.
No Brasil, a situação é bem diferente. Duas das premissas acima são violadas, o que torna a criação de moeda para financiar o déficit fiscal associado ao combate à covid-19 (supondo que a legislação permitisse) muito mais custosa.
Primeiro, moeda e títulos do governo são substitutos imperfeitos. Uma evidência indireta é o aumento dos juros de longo prazo desde que se iniciou a crise. E na crise, ainda há fuga de capitais. Em outras palavras, a demanda por moeda é limitada. Se é verdade que, durante a crise (e em especial no período de lockdown), o risco é de deflação por razões óbvias, após a crise o risco inflacionário fruto da criação de moeda é bem maior do que no mundo desenvolvido.
Mesmo que o comprometimento por parte do Banco Central de voltar à política monetária tradicional seja crível, é provável que o aumento da taxa de juros necessário para combater a inflação subsequente seja bem maior do que se vislumbra no mundo desenvolvido.
Segundo, e mais importante, a ideia de que o Banco Central não deve financiar o Tesouro é um dos pilares do conceito de independência das autoridades monetárias. Mas no Brasil, o Banco Central nem independente é. Alterar a legislação para permitir que o BC financie o Tesouro, ainda que em circunstâncias excepcionais, é sujeitá-lo ainda mais ao risco de captura política no futuro. Mesmo que o BC se comprometesse com a volta à política monetária usual depois da crise, a falta de independência formal, combinada com a permissão expressa da nova legislação, abriria uma brecha para que se questionasse a solidez desse comprometimento, especialmente quando se leva em conta o ciclo político.
O resultado pode ser inflação bem mais alta. E esse filme a gente já viu. O potencial de estrago é enorme.
Para a travessia da crise, economistas brasileiros de diversas vertentes têm insistido, corretamente, que além de aumento nos gastos com saúde, são necessárias transferências substanciais de renda aos mais vulneráveis e, também, garantia governamental em empréstimos de capital de giro, para que as empresas sigam pagando suas contas.
Esse esforço fiscal durante a crise é, de fato, fundamental. Mas é importante que seja financiado por aumento da dívida pública, com suas conhecidas implicações: inevitáveis sacrifícios a enfrentar no futuro, seja por elevação de carga tributária ou por corte de gastos (ainda que temporários). Não há mágica possível. O quanto antes se consolidar esta visão, melhor. Já basta a gravidade da crise atual. Não faz sentido amplificá-la ainda com uma crise adicional de confiança.
Eduardo Zilberman é professor associado do Departamento de Economia da PUC-Rio.