Valor Econômico, v. 20, n. 4975, 04/04/2020. Legislação & Tributos, p. E2
Pelo Carf, para a sociedade
Gileno Barreto
Algumas vozes se levantaram contrariamente à mudança no “voto de qualidade” no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), e pretendo apresentar um contraponto.
Na qualidade de ex-conselheiro, escrevi algumas vezes ser favorável ao voto de desempate nos julgamentos, considerando o modelo paritário adotado, e pressupondo não uma herança desse ou daquele modelo, mas do fato de que nesse tipo de revisão de ato administrativo não há a tradicional estrutura adotada pelo Judiciário de três partes, quais sejam, juiz, Estado e contribuinte. Nessa estrutura, o Estado é dissociado doo juiz, enquanto no Carf o juiz é o próprio Estado.
Contudo, algumas afirmações ofensivas foram erigidas a partir de ilações. Em que pese eu fale por mim, creio que merecem algumas considerações de parte dos contribuintes, principalmente de parte dos hipossuficientes, a maioria das pessoas físicas.
Primeiro, de premissa maior. Parte-se do pressuposto de que todo contribuinte é desonesto até que se prove o contrário. Isso sim, uma herança da lógica ultrapassada de que ao Estado tudo, e aos cidadãos as batatas (ou os impostos).
A alegação de que os contribuintes influenciam as confederações não pode ser usada como uma prova daquela premissa maior subjacente, eis que é parte do próprio modelo paritário. Assim, a autoridade fiscal também adota internamente sua política - absolutamente desconhecida pelos contribuintes - de escolha dos seus conselheiros, que pode inclusive seguir critérios ideológicos de acordo com a liderança do momento. Não importa.
Segundo, o texto legal não inverte o poder das autoridades fiscais para o contribuinte, como se quer fazer crer. Ele simplesmente positiva o art. 112 do CTN que, à semelhança da lei penal, prevê que a dúvida beneficia o acusado, pois sobre ele recai as penas da lei e das multas, e principalmente das multas agravadas, de até 150%, que vinham sendo aplicadas sem qualquer critério jurídico. No caso das múltis, cujo conjunto inclui grandes contribuintes, soa muito estranho que em seus países gozem de reputações ilibadas mas sejam acusados de bandidos, de fraudadores, apenas no Brasil, aumentando sobremaneira o risco de se investir nessas paragens. É de se arguir se o Estado brasileiro é mesmo melhor que o de outros países.
Em seguida, a suposta expressividade dos valores envolvidos não necessariamente decorre dos tributos em si, como se quer iludir, mas justamente da aplicação indiscriminada de multas punitivas que, em cima de teses jurídicas, podem chegar a até 300% do principal, acumulando multas agravadas e indedutibilidades.
Porém, o que mais chama a atenção é o argumento retórico de que as autoridades fiscais teriam nos últimos anos fiscalizado o “andar de cima”, expressão cunhada por importante e respeitado jornalista. Por esses argumentos, confundem esse “andar” com as grandes empresas ou pessoas físicas que sustentam a arrecadação federal, dentro da lei, e a partir de um complexo e eficiente sistema informatizado implementado ao longo das últimas duas décadas. O mais moderno do mundo, frise-se. O que se vê, ao contrário, são lançamentos feitos “em tese”, muitos sem base legal, e alguns utilizando-se de falhas na legislação em benefício do Estado - o que é a maior ofensa possível ao princípio da presunção da “boa-fé” do Estado perante o particular.
Em matéria tributária, infelizmente, muitos lançamentos demonstram o oposto. Mais, se essas grandes autuações seriam assim tão recentes como afirmam, por uma questão de lógica e dialética dever-se-ia informar o leitor de que elas seriam também contemporâneas à instituição do bônus de eficiência para as autoridades fiscais. Os mesmos que lançam são os mesmos que têm a sua remuneração complementada por um percentual das multas mantidas. Nada contra premiar uma boa performance, mas quem diz isso não são os contribuintes, tal suposto conflito de interesses foi apontado pelo TCU recentemente (TC 005.283/2019-1).
Infelizmente o que ocorreu foi justamente o oposto: também recentemente o voto de qualidade passou a ser utilizado como mecanismo de imposição da “vontade do Estado” aos contribuintes que ficaram à mercê de revisões carimbatórias, o que literalmente desqualificou o Carf como instância técnica máxima que era, de discussão do Direito Tributário e da Ciência Contábil, reduzindo-lhe a condição de mero cronômetro de espera pelo Judiciário, cujas consequências ainda estão por vir, pois o tempo beneficia justamente o mau pagador.
Esperar uma mudança de comportamento dos contribuintes em face de uma eventual mudança no voto de qualidade é novamente a reação do pensamento do Estado “total” brasileiro, contrário à liberdade econômica. Atribuir a pecha de desonesto aos contribuintes é ignorar a própria competência das autoridades fiscais, que dispõem do melhor quadro técnico do funcionalismo público brasileiro, preparado, treinado, e sobretudo ético e honesto.
Concluindo, tais afirmações mais se assemelham às do garoto que é o dono da bola no campo de várzea. Hoje mudo minha opinião anterior em face do que veio a se tornar o órgão nos últimos anos, como derradeira esperança de que esse possa manter sua importância para o sistema tributário brasileiro.
Como se diz na Bahia, quem tem competência se estabelece. Que vença o melhor direito, seja do Fisco, seja dos contribuintes, e não o melhor argumento de autoridade, que o voto de qualidade hoje impõe a quem recorre ao Carf.
Gileno Barreto é contribuinte e advogado. Ex-conselheiro do Carf.
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