O Globo, n. 32515, 15/08/2022. Economia, p. 13

A batalha do almoço

Manoel Ventura


A aprovação pelo Congresso, no início do mês, das novas regras para o vale-alimentação e refeição acirrou ainda mais o mercado de benefícios aos trabalhadores, que movimenta cerca de R$ 150 bilhões por ano. Com divergências sobre as regras aprovadas, empresas responsáveis pela operação do serviço e restaurantes pressionam o governo nos bastidores e publicamente. Gigantes do mercado avaliam que as mudanças podem trazer problemas para a segurança e a operação do setor. Empresas que buscam avançar no segmento veem na MP a chance de aumentar a competição.

A medida provisória (MP), já aprovada por Câmara e Senado, está no Palácio do Planalto para análise do presidente Jair Bolsonaro e abriu uma guerra no setor. De um lado, estão gigantes como Sodexo, Alelo, Ticket e VR, que dominam 90% do mercado. Do outro, a gigante do segmento de entregas, o iFood.

Portabilidade gratuita

O texto traz uma série de mudanças. Determina a portabilidade gratuita a partir de maio de 2023, ou seja, o trabalhador escolherá qual vale quer usar. Também obriga, a partir do ano que vem, a interoperabilidade das redes credenciadas — um restaurante que aceita uma bandeira será obrigado a aceitar todas as outras, como já ocorre com cartão de crédito.

As grandes empresas que operam os benefícios defendem o veto a esses dois pontos, por meio da Associação Brasileira das Empresas de Benefícios ao Trabalhador (ABBT). A entidade afirma que, com o modelo atual de redes fechadas, existe o controle dos estabelecimentos comerciais aptos a aceitarem os vouchers, com checagem da qualidade das refeições e a proibição de usar os vales para compras de bebidas alcoólicas ou cigarros, por exemplo.

A entidade se posiciona contra a portabilidade: “A ação, que em um primeiro momento pode parecer simples, cria dificuldades e pode inviabilizar a concessão do benefício pelos empregadores, que passarão a ter que gerir internamente dezenas de operadoras diferentes para o pagamento do benefício”, informou em nota.

O iFood, por sua vez, defende a sanção desses dois pontos, mesmo que eles sejam alvo de regulamentação futura. Os dispositivos são fundamentais para o iFood Benefícios, vertical de vales que a empresa quer deslanchar.

— Nós defendemos a manutenção da portabilidade, porque ela tira o foco do empregador e coloca o trabalhador no centro da política pública. O trabalhador vai passar a ter direito de escolha. E vai escolher o melhor produto, o que tem a melhor tecnologia, a melhor experiência, o melhor atendimento. Com relação ao arranjo aberto, isso vai facilitar muito a expansão do próprio mercado. As maquininhas vão aceitar todos os vales. Isso vai beneficiar o trabalhador e o setor de supermercado — disse Lucas Pittioni, diretor jurídico do iFood.

Marcelo Sena, advogado trabalhista, sócio na Mosello Lima Advocacia, afirma que, da forma como a portabilidade está colocada, ela poderá onerar as empresas, se não houver regulamentação posterior.

— Hoje, o empregador tem contato com uma empresa operadora do vale-refeição. Se tenho várias empresas com as quais posso interagir, a equipe vai ficar onerada. Posso precisar de mais gente, mais sistemas —disse, ressaltando que a regulamentação poderia resolver esse ponto. — As empresas deverão compartilhar a rede credenciada, o que vai facilitar muito a vida do trabalhador.

A MP proíbe ainda uma prática que ficou conhecida no mercado de benefícios como “rebate”. Grandes fornecedores de vales cobram taxa do restaurante credenciado — em torno de 6% do valor da refeição — e, ao mesmo tempo, concedem desconto ao empregador que pode chegar a 4%, dependendo do contrato. A prática, segundo a MP, deve continuar a valer nos contratos já existentes, até maio.

O fim do rebate deve favorecer principalmente as startups de cartões de benefícios flexíveis, como Caju, Flash e Swile, e torná-las mais competitivas com as grandes do mercado. As startups cobram taxa de 2% do restaurante, mas não oferecem desconto à contratante.

— O rebate é nocivo ao segmento. O governo tem um programa de benefícios (Programa de Alimentação do Trabalhador, o PAT) que beneficia as empresas e o trabalhador. A gente tem que ter isonomia — afirma Júlio Brito, general manager da Swile.

A Caju disse considerar a MP positiva para o mercado, “especialmente por proibir práticas anticompetitivas como o rebate e o pós pagamento”.

A Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) defende o veto à portabilidade para evitar o que considera um “rebate” disfarçado por meio de promoções e cashback (dinheiro de volta). “O rebate comprava os empregadores, o cashback comprará o trabalhador. A conta ficará conosco e com o consumidor”, afirma a associação.

Saque após 60 dias

A MP permite ainda o saque pelo trabalhador do saldo não usado ao fim de 60 dias. O pedido para esse trecho ser vetado é consenso entre as empresas. Mas apenas entre 1% e 2% dos trabalhadores têm saldo acumulado de dois meses. Além disso, com o aumento do custo de vida, o saldo do vale acaba em média em 13 dias. Em 2019, ele durava 18 dias.

— Na minha visão, há um óbice legal a isso, que é a CLT. Ela fala que as importâncias, ainda que pagas habitualmente, a título de alimentação não integram a base de remuneração do empregado, desde que não pague em dinheiro. Ou seja, se saca isso em dinheiro, pode incidir encargos — afirma Matheus Quintiliano, do Velloza Advogados Associados.

As regras da MP valem para empresas dentro ou fora do PAT, que oferece incentivos fiscais com base nos valores distribuídos aos empregados — o auxílio-alimentação fora do PAT é importante porque afasta o risco desse benefício ser visto como salário. A medida deixa claro que o vale-alimentação deverá ser usado exclusivamente no pagamento de refeições e na aquisição de gêneros alimentícios.

— Acontecia muitas vezes que esse benefício era desviado para completar o salário da pessoa ou para outros motivos que não envolviam a natureza do benefício — explica José Roberto Covac, sócio da Covac Sociedade de Advogados.