O Globo, n. 32518, 18/08/2022. Opinião, p. 3

Democracia na berlinda

Merval Pereira


Se nossas instituições estivessem funcionando normalmente, como gostamos de afirmar como que para acalmar os mais pessimistas, o ministro Alexandre de Moraes não precisaria ter feito o discurso que fez ao assumir a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Nem mesmo precisaríamos ter um tribunal superior para cuidar das eleições, espécime raro que não é encontrado com facilidade noutros países. Mas, numa situação que os ventos da política criaram, o ministro teve de assumir com um libelo a favor da democracia e das urnas eletrônicas, tendo a seu lado o presidente Jair Bolsonaro.

Fez um discurso impressionante, que mexeu com a vida política e repercutiu tanto em Brasília que alguns apressadinhos já falam que ele poderá ser candidato à Presidência da República em 2026, representante de uma direita mais palatável que o extremismo de Bolsonaro. O que também demonstra a disfunção de nossa cidadania: continuamos buscando um “salvador da pátria”. Apesar de ser o responsável por inquéritos caracterizados por abusos autoritários, como acusam os bolsonaristas. Infelizmente os fatos confirmaram a necessidade de uma ação vigorosa do Supremo Tribunal Federal (STF) contra grupos golpistas que continuam a tentar desestabilizar a democracia, não tão estável quanto gostaríamos que fosse. Os vícios de origem dos inquéritos, e os inegáveis exageros, acabaram atenuados pelos acontecimentos golpistas liderados pelo próprio presidente da República.

Moraes, apesar das tentativas de panos quentes estimuladas pelo Planalto, não contemporizou, não amenizou o discurso; quis demonstrar ao presidente que não será fácil tumultuar a eleição, chegou com a faca nos dentes. A plateia foi em boa parte formada pelo empenho pessoal dele. Teve a presença de 22 governadores, lideranças políticas variadas e, detalhe que ganhou relevância pelos fatos anteriores, cerca de 50 embaixadores que, em situação normal, não estariam lá. Os representantes estrangeiros foram dar apoio à democracia brasileira em número maior que os 40 embaixadores que compareceram à entrevista coletiva esdrúxula convocada pelo presidente Bolsonaro para falar mal do próprio país.

Conta-se em Brasília que Bolsonaro não queria ir à posse, cujo convite lhe foi entregue pelo próprio Moraes e por seu vice, o ministro Ricardo Lewandowski. Seria um rompimento simbólico muito forte em tempos de eleição. Além do mais, como presidente, foi-lhe ponderado que estaria em situação superior a seu concorrente imediato, o ex-presidente Lula, que ficaria na plateia, enquanto ele na mesa principal. Não deu certo.

Bolsonaro constrangeu-se ao ouvir a defesa das urnas eletrônicas aplaudida longamente pela plateia, enquanto não tinha onde colocar as mãos. Também ficou de frente para Lula, o que o impediu de fingir que nada estava acontecendo. Seu olhar não escondia o desconforto da situação. Quanto a Moraes, tornou-se o principal assunto das rodas de poder em Brasília e certamente terá papel relevante na eleição, que, por ação de Bolsonaro, transformou-se num pleito especial para o futuro da democracia brasileira. O que também demonstra que nossas instituições ainda precisam de apoio da opinião pública para permanecer estáveis e atuantes.

A bem da verdade, a atuação do ex-presidente Donald Trump nas ações golpistas nos Estados Unidos tornou reais as ameaças de Bolsonaro por aqui. Se foi possível haver na democracia mais forte do mundo uma situação radical como a invasão do Capitólio, o que não poderia acontecer entre nós, uma jovem democracia com instituições não tão fortes como teriam de ser neste momento?

Estamos numa hora política delicada, em que todas as ações de combate à corrupção foram sendo gradativamente desarticuladas num movimento “com Supremo, com tudo”, como preconizava o ex-senador Romero Jucá, que, igual muitos outros, volta às lides eleitorais depois de envolvimento em processos na Lava-Jato. Ainda por cima, Lula já assumiu o compromisso de rever a Lei da Ficha Limpa, que considera exagerada. Isso quer dizer que será alterada, pois é um anseio suprapartidário num Congresso lotado de fichas-sujas.