Correio Braziliense, n. 21856, 18/01/2023. Política, p. 2

"Os lobos solitários estão espalhados"

Entrevista: Simone Tebet


Senadora licenciada diz ser necessária atenção a novas investidas golpistas como a do último dia 8. Ela afirma que pretende fazer propostas para um arcabouço fiscal e que a reforma do Imposto de Renda deve ocorrer de maneira gradual

A ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, não tem dúvidas de que fez a escolha certa ao apoiar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e sente um alívio de missão cumprida por ter participado da derrota do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e do negacionismo que ele representou.

Na avaliação dela, “o bolsonarismo se mostrou maior do que Bolsonaro”. “Os frutos, lamentavelmente, vão cair e, isoladamente, pelo Brasil. Assim, nós temos que dormir com o olho aberto, porque os lobos solitários estão espalhados”, disse, em entrevista ao Correio.

A ministra integra o recém-criado Conselho de Acompanhamento e Monitoramento de Riscos Fiscais Judiciais, com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e pretende fazer propostas para o novo arcabouço fiscal. Nesse sentido, ela é a favor de uma regra focada no controle de gastos. “Acho que tem que olhar para o gasto público”, defendeu.

A ministra ressaltou, também, que a reforma tributária é a prioridade do momento e que reforma do Imposto de Renda, prometida por Haddad ainda para o primeiro semestre, na avaliação dela, deverá ser gradual (leia reportagem na página 7). Assim, a promessa de Lula de elevar a atual faixa de isenção de R$ 1,9 mil para R$ 5 mil, deverá ocorrer “até o fim do mandato”. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Dá para ter uma noção do que será possível fazer neste ano dentro de um Orçamento tão apertado?

Acredito que sim. Estamos vivendo um momento tão atípico por todas as razões. E o penúltimo domingo foi o ápice do governo disfuncional, que foi o do ex-presidente Jair Bolsonaro. Não teve outra saída, não só para a Frente Democrática, Frente Ampla, mas também para grande parte da direita, a não ser, num primeiro momento, hipotecar apoio ao Brasil, à democracia e ao governo Lula. Esse é um ponto que precisa ser ressaltado. Se havia alguma dúvida por parte dos últimos democratas, do Congresso e da classe política, não há mais dúvida de que a Frente Ampla tem que se fortalecer e que temos de ajudar nessa travessia, que é o governo Lula, e ajudar o Brasil a sair das crises. Estamos falando não só da crise econômica e social, mas também da crise política, que é a mãe de todas elas.

E como está o Parlamento nesse sentido?

Estamos com um Congresso receptivo num primeiro momento. Há, pelo menos, boa vontade em relação às propostas da equipe econômica do governo Lula. Chegamos ao fundo do poço, seja na crise política, seja na crise econômica. Não há crescimento sustentável, duradouro, com deficit de mais 2% do PIB. Isso não existe. Todo mundo sabe para onde iria, ou iria o Brasil, a se manter isso nos próximos dois anos. Você cria uma incerteza de que o Brasil vai honrar os seus compromissos, os juros não caem. Com juros altos, o Brasil não cresce. E sem crescimento, você não tem emprego e renda. Diante de tudo isso, estou otimista nesse quesito do apoio político que o governo Lula vai ter para aprovar as medidas necessárias no Congresso no que se refere à nossa pasta, que é a pasta econômica.

A senhora disse, em entrevistas recentes, que o plano apresentado é insuficiente. O que vem pela frente em termos de mais ajuste?

Estou replicando o que o ministro Haddad disse naquela coletiva. O programa de reestruturação fiscal que foi apresentado, numa análise otimista, se tudo aquilo der certo, zeramos o deficit este ano e ainda temos um pequeno crescimento, um pequeno superavit, que, na planilha, está em R$ 11,13 bi, na melhor das hipóteses. Aí a pergunta que foi feita pela jornalista para o ministro Haddad foi, ‘mas isso aqui tem que tudo dar certo para a gente cumprir essa meta’. Ele falou: estamos sendo conservadores no crescimento da receita. Na visão dele, de crescer R$ 36,4 bilhões. Mas, se isso não for suficiente, palavras dele, poderemos apresentar outro programa de reestruturação. Se, a cada trimestre, fizermos levantamento das estimativas, e o programa se mostrar insuficiente, poderemos colocar um programa de reestruturação, um segundo plano. Esse é um ponto. O segundo ponto em relação a isso é que eu fui chamada, participamos, demos sugestões e modificamos os decretos sob a ótica da despesa, não sob a ótica da receita. Em relação à receita, discutimos, mas o programa, o pacote, é do ministro Haddad. O que significa? Significa que poderemos, nos próximos 30, 40 dias, apresentar sob a ótica da despesa, novas sugestões de contenção de gastos.

E em relação à reforma tributária?

Há uma unanimidade de que a reforma tributária precisa sair. Qual reforma, é uma outra questão, mas nunca estivemos tão próximos. Os 27 governadores deram ok para aquela proposta que está no Senado (PEC 110). Tínhamos votos para votar na CCJ, tínhamos votos para votar no plenário. Poderíamos ter entregue para a Câmara ainda no fim do ano passado, se não fosse a má vontade ou a não vontade, e o descaso do ministro Paulo Guedes (ex-titular da Economia) em relação a essa reforma tributária.

Já está em debate o arcabouço fiscal?

A questão do novo arcabouço fiscal, a gente vai começar a discutir agora. Quer dizer, o governo, o Ministério da Fazenda, começam a analisar, a pensar nas propostas, e sempre nos chamam para dialogar. E, fazendo um parêntese, estamos sendo chamados para todas as discussões, seja na Casa Civil, quando envolve o Ministério do Planejamento, o Ministério da Gestão também; seja com o próprio ministro Haddad e com a equipe dele. Então, essas três medidas, diria sim, são fundamentais. E aí, na questão dos subsídios, quando falarmos de reforma tributária, estaremos, sim, falando de gastos tributários. Aliás, já está se discutindo qual seria a alternativa, o que cortar. Mas isso é dentro do Ministério da Fazenda. E nossa equipe vai preparar, a partir do dia 24, algumas medidas.

A gente tem uma carga tributária pesada, e quando se fala em reforma tributária, existem várias questões pendentes, porque uma das críticas, apesar do consenso em torno da tributária, há um problema da questão do imposto sobre a renda. Como é que vai ficar a correção da tabela em janeiro?

Acho que são duas coisas paralelas. Aliás, o Brasil precisa de três reformas tributárias: sobre consumo, renda e trabalho. Como resolver o problema da informalidade, que é uma outra história. Não estou dizendo que tem que se fazer uma de cada vez, pode se fazer concomitante. Por exemplo, a reforma sobre a renda é uma lei complementar. Então, é muito mais fácil de ser analisada e votada. E ela trata de pontos específicos, bem menores que a reforma tributária sobre o consumo. A reforma sobre a renda está parada. O que ela faz? Mexe na tabela de Imposto de Renda para dar um fôlego para a classe média, porque a tabela está muito defasada. Ao isentar um número maior de contribuintes do pagamento do Imposto de Renda, você gera uma despesa, uma diminuição da arrecadação de x e esse x precisa ser compensado de outra forma. A justiça tributária exige que você, nesse caso, em tese, tribute os super-ricos. Diante disso, a alternativa seria, estou dizendo, sob a ótica da gestão passada, não conversei sobre esse assunto, que é  muito mais ligado à Casa Civil, que é uma decisão política, e ao Ministério da Fazenda. Cabe a mim a parte técnica, fazer números, conta e ver a viabilidade mais técnica. E se for consultada politicamente, falarei. Então, o que que eles previam? Previam duas formas: a alternativa de tributar lucros e dividendos. O Brasil é um dos únicos países que não tributa. Tem muita gente hoje que tem dividendo e acha que tem que ser tributado, porque ganha muito e acha injusto não se tributar nada, desde que seja um valor razoável para compensar a diminuição da carga tributária dessa classe média que paga Imposto de Renda hoje. Esse é um ponto mais do que o Guedes efetivamente queria para mexer na tabela de Imposto de Renda para recriar o imposto, que é CPMF, que é imposto digital. Esse imposto tem uma grande rejeição de grande parte da sociedade. Assim, é possível mexer. E o próprio presidente Lula, no seu programa de campanha, disse que iria isentar do Imposto de Renda uma parcela da população com renda mensal de até R$ 5 mil. Ele vai fazer. Temos quatro anos para fazer bem mais que isso. O prazo não está definido. Mas o que posso dizer é que a prioridade é nossa hoje, estamos trabalhando nisso e tenho conversado com Haddad sobre isso. E ele já escolheu uma pessoa para ser secretária especial da reforma. É a reforma tributária sobre o consumo, que é uma PEC. E, como eu disse, ela está bem adiantada no Senado.

Em relação à reforma tributária, a senhora acha que é realmente a PEC 45 ou a PEC 110? Tem um texto no Senado juntando as duas PECs…

O Bernard Appy (secretário especial da Reforma Tributária da Fazenda) vai trabalhar e tem consciência de que o IVA, o imposto único, dificilmente passa. O que também é adiantado é o IVA dual, que é uma mistura da PEC 110 com a PEC 45. Mas ela vai servir como base agora para o Appy, de certo, fazer um ajuste ou outro. E sobre esse assunto, é importante lembrar o seguinte: essa reforma garante neutralidade tributária. Não aumenta a carga tributária no Brasil. Acontece que um ganha, e outros perdem. Na parte dos municípios, a maioria mais do que absoluta, mais de quatro mil municípios ganham, e uns 800 e poucos perdem. Então, a chiadeira é bem menor. Mas o setor de serviços é mais impactado para favorecer um setor que, proporcionalmente, é mais tributário no Brasil, que é o setor industrial. Se a gente não aliviar a carga da indústria no Brasil, não consegue reindustrializar o país. Acompanho a reforma tributária desde que eu comecei a dar aula, portanto, há 32 anos. O ex-presidente Fernando Henrique tentou.

E por que nunca conseguiram?

Mas sabe qual é o meu otimismo? É a primeira vez que os 27 governadores apoiam, porque é preciso a unanimidade. Tanto que os 27 secretários de Fazenda disseram o seguinte: concordamos com essa reforma. O mais difícil era isso. O mais difícil era o ICMS, que dependia do acordo do Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária), mas, quando chegava ao ICMS, que é uma parte muito importante da reforma tributária, não tinha acordo. Agora tem. Por isso, não acredito no IVA único, no imposto único. Você não consegue quebrar todos os ovos para fazer esse omelete. O que for a decisão do governo, vamos defender. Haddad fala em seis meses, mas acho que, se conseguirmos até dezembro, vamos fazer um gol de placa. 

A respeito do novo arcabouço fiscal, qual é a sinalização do presidente Lula? Na sua avaliação, tem que olhar para o gasto como o mercado e especialistas defendem?

Acho que tem de olhar para o gasto. Vamos olhar para o gasto público e, no momento que tiver maduro, vamos apresentar algumas pequenas ou grandes propostas para a Casa Civil, para o Ministério da Fazenda. A Fazenda está pensando em algumas alternativas em relação ao novo arcabouço fiscal. Como eu cheguei agora e não havia anunciado o secretário da SOF, eles já estavam discutindo isso. Combinamos que, quando Haddad voltasse de Davos, a gente começaria a discutir.

Sobre os atos antidemocráticos. O Brasil passou essa etapa de insegurança democrática ou a senhora ainda teme?

Acho que o penúltimo domingo foi, sem dúvida, um dos dias mais importantes da nossa história. Foi um dia tomado por ataques à Constituição, ao Estado democrático de direito, externando aquilo que o ex-presidente Bolsonaro plantou durante quatro anos de governo. De forma objetiva, acabou de se confirmar que o bolsonarismo passou a ser maior que Bolsonaro, e tudo de mal que isso significa. O que nós vimos, no domingo, não se encerrou no domingo. Sob a ótica da democracia, demos a demonstração de que ela está forte e as instituições funcionam. As respostas foram, depois, imediatas. Isso não se discute. Agora, a semente foi plantada. Os frutos, lamentavelmente, vão cair e, isoladamente, pelo Brasil. Assim, temos que dormir com o olho aberto, porque os lobos solitários, agora, estão espalhados.

Leia a íntegra da entrevista no site do Correio