Valor Econômico, v. 20, n. 4976, 07/04/2020. Política, p. A10

Entidades de sociedade civil se unem para exigir diálogo do governo com a ciência

César Felício 


Um manifesto assinado por representantes de seis entidades da sociedade civil será encaminhado hoje aos presidentes dos três Poderes pedindo a manutenção do isolamento social como forma de se combater a pandemia do coronavírus. O documento, com o título “Pacto pela Vida e pelo Brasil”, enfatiza que o “coro dos lúcidos” seja ouvido e que a condução do tema seja guiada pela orientação dos órgãos técnicos e científicos do Brasil e do exterior.

Articuladores do documento, subscrito pela Comissão Arns, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Associação Brasileira de Imprensa, Academia Brasileira de Ciências e Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), enfatizam que o documento é uma plataforma para uma aliança, que pode servir de contrapeso ao governo federal, caso se entenda que a atuação do presidente Jair Bolsonaro agrava os efeitos da pandemia que já matou 553 pessoas e registrou 12.056 casos no país.

“É grave se o governo separar para si uma linha narrativa em que o caos gerado serve de argumento para ações lá na frente. O presidente caminharia a passos largos para inviabilizar a sua permanência no poder”, disse Felipe Santa Cruz, presidente do Conselho Federal da OAB. Segundo Santa Cruz, “se o presidente seguir em uma estratégia sorrateira e dúbia começará a ficar consignado o crime de responsabilidade”.

Para o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, que representa a Comissão Arns, “o crime de responsabilidade já está caracterizado e é nosso dever atuar de mãos dadas”. Tanto Dias quanto Santa Cruz deixaram claro que, no limite, as mesmas entidades que subscreveram o documento ou pelo menos parte relevante delas, poderão se unir para representar contra o presidente da República em um processo que poderá resultar em um impeachment.

“O presidente está perdendo as condições de governar este país, o Brasil está moribundo”, afirmou Dias. “Nós estamos formando uma aliança muito séria pelo Brasil e pela democracia”.

Uma eventual demissão do ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, a depender do modo como aconteça, poderá reforçar o distanciamento de Bolsonaro dos propósitos do documento.

Santa Cruz lembrou que o presidente enviou um ofício ao Supremo Tribunal Federal (STF) garantindo que segue as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) no combate à pandemia. “O presidente tem o direito de substituir um ministro, mas se essa substituição se der no sentido contrário ao que foi oficiado ao Supremo estará estabelecida uma contradição entre o que o presidente afirma e a realidade dos fatos, o que será muito grave”, disse.

O texto do manifesto é voltado para “mulheres e homens de boa vontade”. Ressalta que o momento exige de “todos, especialmente de governantes e representantes do povo, o exercício de uma cidadania guiada pelos princípios da solidariedade e da dignidade humana, assentada no diálogo maduro”. “ O desafio é imenso: a humanidade está sendo colocada à prova. A vida humana está em risco”, frisa o texto.

De acordo com o manifesto, “o isolamento se impõe como único meio de desacelerar a transmissão do vírus e seu contágio, preservando a capacidade de ação dos sistemas de saúde e dando tempo para a implementação de políticas públicas de proteção social”.

“É hora de entrar em cena no Brasil o coro dos lúcidos, fazendo valer a opção por escolhas científicas, políticas e modelos sociais que coloquem o mundo e a nossa sociedade em um tempo, de fato, novo”, afirma o documento.

Os subscritores afirmam que o governo federal deve ser “o promotor desse diálogo, presidindo o processo de grandes e urgentes mudanças em harmonia com os poderes da República, ultrapassando a insensatez das provocações e dos personalismos”. Pede respeito aos princípios da Constituição de 1988 e cooperação com governadores e prefeitos.

“É fundamental que o Estado Brasileiro adote políticas claras para garantir a saúde do povo, bem como a saúde de uma economia que se volte para o desenvolvimento integral, preservando emprego, renda e trabalho”, registra o manifesto.