Título: 'Cassação de Dirceu é um paradoxo'
Autor: Israel Tabak
Fonte: Jornal do Brasil, 04/12/2005, País, p. A2

Entrevista: Marcus Figueiedo

O cientista político Marcus Figueiredo, 64 anos, é diretor de pesquisas do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e especialista em comportamentos políticos e eleitorais. No livro já clássico A Decisão do Voto expõe que o eleitor escolhe o candidato de forma pragmática, avaliando os ganhos passados e as perspectivas de vantagens futuras decorrentes da escolha. A partir desses parâmetros, conclui que a cassação de José Dirceu ¿ um dos mais importantes capítulos da crise que ceifou algumas das principais figuras do PT ¿ contribuiu para acirrar o clima de perplexidade e desencanto desenvolvido em função de quatro episódios, no período pós-ditadura: o fracasso do Plano Cruzado, a decepção com os tempos do confisco da poupança na era Collor, a desvalorização do real, no segundo mandato de Fernando Henrique, e agora os desmandos envolvendo um governo que se apresentava como paladino da ética.

Por isso, afirma que o cenário da eleição de 2006 é de ¿total imponderabilidade¿. E a cassação de Dirceu ¿ adverte ¿ embora resulte de um clamor da sociedade, obrigará a Câmara a rever conceitos, pois a decisão encerra um claro paradoxo:

¿ Jefferson perdeu o mandato porque não comprovou suas denúncias. E Dirceu foi justamente o principal alvo dessas denúncias.

Como os fatos mais recentes da crise, incluindo a cassação de Dirceu, influem no ânimo do eleitor? ¿ O quadro é de descrença, frustração, de enfado. São quatro grandes decepções nos últimos 25 anos. A primeira foi o calote eleitoral do PMDB em 1986, com o malogro do Plano Cruzado. Collor canalizou essa descrença, aparecendo como o salvador da Pátria. A campanha da reeleição de Fernando Henrique proclamava a continuação da estabilidade monetária. E logo em janeiro de 1999 veio a crise, com o real sofrendo uma desvalorização de 30%. Nesse momento a popularidade de Fernando Henrique cai de 40% para 25%. O PT veio então embalado no ¿clima de mudança¿. O eleitorado resolveu, finalmente, dar uma chance ao partido e a Lula, que prometia estabilidade econômica com avanço social. Esta é a decepção mais recente.

E havia a promessa da ética... ¿ A corrupção nem estava em questão. Não entrava no debate. Era ponto pacífico. Dizia-se que nesse aspecto o PT era exemplar. Depois de o eleitor tentar acertar ¿ pela quarta vez ¿ desaba essa crise. Hoje o cidadão diz que o PT é igual aos outros que o decepcionaram.

Esse desencanto é mensurável? ¿ Hoje 65% dos eleitores não sabem em quem votar. Isso se verifica quando a pergunta não é induzida, com a sugestão de nomes. Tradicionalmente, nessa época, esse número costuma variar entre 45% e 55%. E além disso, entre esses 65%, cerca de 25% dizem que vão anular o voto, o que é também um índice expressivo e preocupante, mostrando o nível da decepção com a política. E no cenário atual, o eleitor está vendo de novo Lula, Serra e Garotinho, que disputaram a última eleição. Não há novidades, portanto.

Garotinho vai se apresentar como novidade, depois dos governos do PSDB e PT... ¿ Mas ele não é bem uma novidade, pois já foi candidato derrotado. O caminho natural, no entanto, será mesmo o de tentar se apresentar como alternativa. Sem dúvida, Lula, Serra e Garotinho são os três nomes mais competitivos hoje. E todas as combinações de candidatos podem ocorrer no segundo turno. Hoje nem mesmo Lula pode se considerar garantido no segundo turno.

Lula está longe de ser carta fora do baralho... ¿ Certamente. Ele tem a seu favor a estabilidade econômica, indicadores sociais positivos e um programa social que que deve chegar a 11 milhões de famílias no próximo ano. Isso significa ente 22% a 30% do eleitorado. E não se pode deixar de levar em conta que os vizinhos e parentes dos beneficiados também passam a avaliar positivamente os programas. O problema do PT será enfrentar a campanha negativa que deve ser lançada aproveitando a crise ética do governo.

É a vez de Serra entrar na história... No segundo turno da eleição que perdeu ele dizia que tinha medo de um governo do PT. Este mote agora vai ser ecoado. Aconteceu o que a sua campanha vinha prevendo. Parte ponderável do eleitorado tenderá a achar que Serra tinha razão.

Garotinho seguirá mesmo o discurso clássico da ¿terceira via¿? ¿ Com certeza ele vai dizer que é ¿contra tudo isso¿ que veio antes dele, tanto em relação ao PT como ao PSDB. A campanha certamente será polarizada entre tucanos e petistas e ele fica como aquele jogador de basquete que espera a sobra da bola.

Mas Garotinho ainda depende de legenda... ¿ Acho muito difícil ele não conseguir legenda. Está muito bem nas pesquisas de opinião, na faixa dos 15%. Nenhum outro político do PMDB chega perto desse nível de intenção de voto. Além disso, ele sabe que não pode mais sair do partido. Se resolveu permanecer é porque avaliou que tinha alta probabilidade de conseguir essa legenda.

E não pode surgir uma quarta via, um candidato de fato descompromissado com estruturas políticas tradicionais? ¿ Não há a menor chance, simplesmente porque não existe nenhum outro nome que traga com ele um suporte político mínimo. E o eleitor não gosta de desperdiçar o voto, escolher alguém que ele sabe não ter chance. O voto, apesar de tudo, representa um investimento no futuro.

Na raíz da última grande frustração do eleitorado está a mudança de rumos do PT, quando chegou ao poder central. E José Dirceu era o símbolo desse novo ¿PT pragmático¿. Quais as principais lições da cassação de Dirceu? ¿ Eu tiraria algumas lições do episódio. O primeiro é que o processo interno de cassação na Câmara precisa ser revisto. Se considerarmos as duas únicas cassações ¿ de Roberto Jefferson e Dirceu ¿ assistimos a um paradoxo: Jefferson foi cassado porque fez a denúncia e não teria conseguido prová-la. Dirceu foi cassado porque é o principal ator, o alvo da denúncia não comprovada. A Câmara usou razões contraditórias para cassar os dois. Foram cassações políticas. No caso de Jefferson, praticamente tudo que denunciou está se confirmando. Quanto a Dirceu, era inconcebível que com a sua posição e o seu poder estivesse alheio a todo o processo.

Dirceu insistiu o tempo todo na falta de provas contra ele. ¿ No caso da denúncia de Jefferson contra Dirceu não houve a prova factual. Mas nas regras do Conselho de Ética não há necessidade da prova factual. Basta a prova circunstancial, porque é um julgamento político. Os dois simbolizaram um processo viciado. E o Congresso respondeu à pressão da sociedade.

E quais seriam as outras lições? ¿ Há necessidade urgente de mudar o sistema de financiamento da política brasileira. O atual sistema induz ao caixa dois que caminha junto com a corrupção sistêmica. Isso é agravado pela ausência total de fiscalização por parte do TSE, que só aprecia as contas depois das eleições. A outra lição é o alto risco dos partidos sofrerem perdas brutais de votos, aumentando a taxa dos votos e brancos e nulos. Isso traz a perda de representatividade do sistema. Além disso, os partidos precisam estabelecer regras de entrada e saída de militantes. Hoje esse processo é caótico.

Foi nesse caldo de cultura que o governo do PT ¿pragmático¿ tropeçou. ¿ O PT aprendeu que não pode mais ser tão ¿aberto¿ em termos de alianças. Hoje já não existe uma hegemonia clara de um grupo dentro do partido. Se o PT insistir em reproduzir as práticas mais recentes corre o risco da desmoralização total. Os dirigentes terão de achar outra maneira de financiar a próxima campanha. Será muito difícil formar um arco tão amplo como o de 2002, porque o PTB, o PL e o PP ficaram em situação muito difícil perante a sociedade. Serão um alvo fácil da oposição. E uma aliança com o PMDB parece improvável, porque esse partido terá de abdicar de candidato próprio, contentando-se com a vice-presidência. O PMDB vem perdendo voto a cada eleição por não ter candidato majoritário, que costuma ser o maior puxador de votos para uma legenda.