Valor Econômico, v. 20, n. 4976, 07/04/2020. Finanças, p. C1

Atuação do BC em títulos privados pede diretriz

Ana Paula Ragazzi 


O Conselho Monetário Nacional (CMN) vai regulamentar a compra e venda pelo Banco Central no mercado secundário de títulos do Tesouro e de crédito privado, além de direitos creditórios, depois da aprovação de proposta de emenda constitucional (PEC) no Senado. O que se espera são diretrizes para a atuação do BC brasileiro em linha com parâmetros usados por outros BCs que já adotaram a medida.

O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, afirmou, em live da XP no sábado, que o CMN vai definir “qual crédito poderá ser comprado, quais setores serão elegíveis e qual é o tipo de risco que o BC poderá tomar com dinheiro da sociedade”. Deverão ser fixados, por exemplo, um percentual máximo de aquisição por emissão, um rol de setores e empresas, certamente entre aquelas que tenham as maiores notas de crédito. Algumas fontes acreditam que as compras possam ficar centralizadas em empresas do Ibovespa; ou que se busque setores prioritários, como energia ou saúde.

Está na PEC também a possibilidade de o BC adquirir “direitos creditórios”, expressão que pode abrigar vários tipos de recebíveis, incluindo, por exemplo, uma carteira de empréstimos concedidos pelos bancos - a compra pelo BC liberaria o balanço e daria mais liquidez a essas instituições financeiras. A questão aqui é que, diferentemente dos títulos, não há preço público de mercado para essas carteiras, tampouco elas têm padronização. Pela eventual falta de transparência que essa negociação poderá ter, aqui se espera regras bem detalhadas pelo CMN.

Em seu programa, o Federal Reserve (Fed, banco central americano) foca apenas títulos com boa classificação de risco (“high grade”), assim não compra mais do que 10% de um bônus ou 20% de um ETF (fundo com cota listada em bolsa) desse bônus. O BC britânico não especificou percentual para as compras, mas disse que faria uma “carteira equilibrada”, sem favorecer empresas ou setores, buscando companhias que “dão contribuição material à economia britânica” - foram excluídos bancos, construtoras e seguradoras.

BCs de todo mundo têm anunciado a compra de títulos de crédito corporativo e de outros ativos no mercado secundário como um instrumento de política monetária, por conta dos reflexos nos preços das incertezas causadas pelo coronavírus. Essas taxas ficaram disfuncionais em todos os mercados.

Papéis de empresas com nota “AAA” (high grade) tiveram forte alta nas taxas, com correspondente desvalorização. Uma empresa com boa nota de crédito passou a ser avaliada no mesmo nível de uma considerada não tão boa pagadora, na avaliação das autoridades monetárias, por questões de liquidez e aversão ao risco. No sábado, Campos Neto reforçou a visão de que a crise é de liquidez e não de custo de funding.

Os BCs agem, então, para tentar trazer aos negócios alguma normalidade, injetando liquidez ao sistema e, com o aumento da oferta de compra, ajustando a precificação da cadeia do crédito. O que se pretende com isso é tentar reduzir o custo de concessão de crédito e captação para as empresas, que é parte relevante na determinação do preço de uma ação. Em tese, taxas menores podem incentivar tanto as emissões primárias quanto levar a taxas menores operações de empresas com maior risco.

Uma primeira questão é o tamanho do programa do BC no Brasil, ou seja, qual a injeção de recursos necessária para normalizar os spreads. O Fed poderá usar até US$ 1 trilhão, mas a tranche inicial para a compra de bônus e ETFs de bônus é de US$ 100 bilhões. Esse valor corresponde a perto de 1,5% do total de US$ 7 trilhões desses papéis no mercado dos Estados Unidos.

O mercado brasileiro de debêntures, em fundos independentes, é próximo a R$ 200 bilhões e o número que circula há semanas como suficiente para acalmar esse mercado no Brasil é de R$ 20 bilhões, ou 10% do total. A avaliação dos gestores de crédito privado é que, se fosse para atuar com um valor inferior a este, o BC não iria fazer a PEC. A expectativa é de que ele vai propor um programa “largo”, mas desembolsará muito menos do que esse valor “autorizado”.

O Fed nem precisou começar a atuar, pois só o anúncio, em 23 de março, destravou o mercado para as grandes empresas. Semana passada, 49 companhias americanas levantaram US$ 109 bilhões com títulos high grade, superando o recorde anterior, de US$ 73,5 bilhões, registrado em uma semana de setembro de 2019. Como os tempos são de crise, elas pagaram mais caro para captar, mas entenderam que a taxas valeriam a pena na crise.

Antes da pandemia, as emissões high grade saíam com spread de 100 pontos-base em relação ao Treasury americano. No auge do estresse, chegaram a 350 pontos-base, mas caíram a 250 após o anúncio. Já no caso dos títulos de maior risco, “high yield”, o mercado segue fechado - segundo a imprensa internacional, há um mês não saem operações.

Por aqui, após o anúncio da PEC, os spreads também acalmaram no mercado secundário, que chegou a ter negociação recorde. O exemplo mais curioso foi do Fleury, que anunciou no dia 31 de março operação de notas promissórias a CDI + 3,96%. Três dias depois, disse que a taxa foi revista para 2,95%. Esse recuo de 1 ponto foi observado em outros papéis no secundário.

A questão é que o mercado de crédito privado brasileiro já estava fechado desde o fim do ano passado, por conta de um ajuste técnico. No primeiro semestre de 2019, a saída do investidor dos fundos DI para o crédito privado, em busca de mais retorno, criou muita demanda para debêntures, o que achatou as taxas. Como os spreads ficaram muito comprimidos, elas deixaram de atrair os investidores, o que levou, no segundo semestre, a resgates nos fundos e paralisação de emissões no mercado primário. Enquanto esse mercado ainda procurava um novo patamar de taxa, veio a pandemia.