Título: Processo político, regras jurídicas
Autor: Dalmo de Abreu Dallari
Fonte: Jornal do Brasil, 03/12/2005, Outras Opiniões, p. A13

Na turbulência política em que viveu o Brasil nos últimos meses, com a apresentação de denúncias de práticas de corrupção política num clima bastante perturbado pela demagogia e pelo oportunismo, foram colocadas algumas questões jurídicas relevantes, que merecem especial atenção. Pelas atitudes de alguns dos personagens envolvidos nos fatos, bem como pela justificativa apresentada por eles e por alguns analistas da área jurídica, fica evidente que é necessário e urgente provocar uma reflexão sobre os postulados do Estado Democrático de Direito, seu significado e suas implicações.

Antes de tudo, é importante lembrar precisamente esse ponto: a Constituição brasileira proclama que o Brasil é um Estado Democrático de Direito. Embora existam algumas variantes teóricas quanto ao significado dessa expressão, há consenso quanto ao entendimento de que o Estado de Direito é aquele que se constitui com base em regras jurídicas e no qual todos os atos que possam afetar direitos, inclusive os atos de governo e de qualquer agente público, estão subordinados ao direito. Num Estado de Direito não se admite poder arbitrário e todos os que exercem qualquer função pública somente podem fazer o que a lei permite e todos estão obrigados a fazer o que a lei determina, sendo todos juridicamente responsáveis por seus atos, ninguém estando imune ao controle da legalidade de seus atos e omissões.

Nos acontecimentos políticos recentes, tendo por centro o Congresso Nacional, foi amplamente explorada, por alguns parlamentares e por parte da imprensa, a idéia de que estaria ocorrendo um conflito de poderes, pela ingerência do Supremo Tribunal, órgão de cúpula do Poder Judiciário, em questões internas do Poder Legislativo, o que seria ofensivo à Constituição. Haveria, segundo foi dito e escrito reiteradamente, uma afronta à independência do Legislativo, pois os processos em curso nas Comissões do Parlamento envolviam matéria de sua competência exclusiva. Além disso, estaria havendo um erro jurídico ou pelo menos uma grande confusão, pois o Supremo Tribunal Federal estaria impondo o respeito a regras jurídicas, esquecendo-se de que os processos em curso no Legislativo são processos políticos.

Antes de tudo, é necessário e oportuno assinalar que os processos em curso em qualquer órgão público, desde que afetem ou possam afetar direitos, são processos jurídicos, sujeitos a regras jurídicas, o que decorre da afirmação constitucional de que o Brasil é um Estado de Direito. Nesse tipo de Estado não se admite que qualquer agente do Poder Público atue arbitrariamente e imponha sua vontade sem limitações jurídicas. Assim, o processo em curso no Legislativo poderá ser considerado político pela matéria envolvida e pelos objetivos que se quer atingir, mas quanto à forma e, mais ainda, quanto às limitações que os agentes devem obedecer, bem como quanto aos efeitos que podem ser produzidos, são processos jurídicos. Nos embates políticos costuma-se considerar que a maioria pode tudo, inclusive impor sua vontade e suas regras. Isso não se pode aplicar ao processo jurídico.

A par disso, é importante lembrar o que dispõe expressamente e com toda a clareza o inciso 35 do artigo 5º da Constituição: ''a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito''. Nenhuma lei brasileira diz que as lesões ou ameaças a direitos praticadas dentro das Casas do Legislativo, em processos que ali tenham curso, ficam fora da proteção judicial. E se alguma lei dissesse isso seria evidentemente inconstitucional. A Câmara de Deputados acaba de decidir pela cassação do mandato do deputado José Dirceu, por quebra do decoro parlamentar. Essa decisão da Câmara afeta direitos e poderá ser objeto de ação perante o Supremo Tribunal, pedindo sua anulação. O conteúdo político da matéria não dá ao processo o caráter de ''processo político'', descompromissado do respeito a normas legais. Do ponto de vista do Direito, o processo é jurídico e por isso sujeito às regras processuais legalmente estabelecidas. Se o Supremo Tribunal for acionado deverá tomar conhecimento e proferir decisão, considerando legal ou ilegal a cassação. Decidindo sobre o assunto o Tribunal estará cumprindo seu dever constitucional, sem quebra do princípio constitucional da independência dos três poderes.