Título: Tempo natalino
Autor: D. Eugenio Sales
Fonte: Jornal do Brasil, 03/12/2005, Outras Opiniões, p. A13
A celebração do Natal do Menino Jesus está às portas. Em todo o mundo cresce a expectativa da comemoração de tamanha importância para a humanidade. Enquanto alguns se agitam dentro de um interesse comercial, outros, conscientes de sua responsabilidade cristã, buscam com afinco um aconselhamento espiritual nesta oportunidade. Trata-se de uma tarefa pessoal e comunitária. Nada mais oportuno que recordar alguns documentos do papa João Paulo II para o período natalino.
Assim começa a ''Incarnationis Mysterium'', bula de proclamação do Grande Jubileu do ano 2000: ''Tendo o mistério da encarnação do Filho de Deus diante dos olhos, a Igreja está para cruzar o limiar do terceiro milênio. Neste momento, mais do que nunca, sentimos o dever de fazer nosso o cântico de louvor e agradecimento do Apóstolo: 'Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, do alto dos Céus, nos abençoou com toda espécie de bênçãos espirituais em Cristo. Foi assim que n'Ele nos escolheu antes da constituição do mundo, para sermos santos e imaculados diante dos seus olhos. Predestinou-nos para sermos seus filhos adotivos por meio de Jesus Cristo, por sua livre vontade'''. E logo a seguir afirma: ''Por estas palavras, se vê claramente que a história da salvação tem o seu ponto culminante e significado supremo em Jesus Cristo. N'Ele, todos nós recebemos 'graça sobre graça' (Jo 1, 16), conseguindo ser reconciliados com o pai (cf. Rm 5,10; 2 Cor 5, 18)'' (nº1).
Em meio à agitação das compras e dos preparativos de ordem material, meditemos, no íntimo de nosso ser, o seguinte trecho do documento ''Incarnationis Mysterium'': ''O nascimento de Jesus em Belém não é um fato que se possa relegar para o passado. Diante d'Ele, com efeito, está a história humana inteira: o nosso tempo atual e o futuro do mundo são iluminados pela sua presença. Ele é 'o Vivente' (Ap 1, 18), 'Aquele que é, que era e que há de vir' (Ap 1,4). Diante d'Ele, deve dobrar-se todo joelho no céu, na terra e nos abismos, e toda língua há de proclamar que Ele é o Senhor (cf. Flp 2,10-11). Cada homem, ao encontrar Cristo, descobre o mistério da sua própria vida''.
Diante de tanta angústia em nosso país, tão querido, e em vários outros setores habituais da existência humana, ferida pelo pecado original, o presépio é um lugar privilegiado para reler umas e outras passagens evangélicas. O perigo que nos deve angustiar não nasce do fato em si, mas de enfrentá-lo sozinho. Por isso, neste período natalino, proponho a meditação desses e outros trechos. Vivê-los junto ao presépio com suas extraordinárias e oportunas lições. O Salvador é levado no regaço da Virgem Mãe. Antecipadamente vemos o Menino Jesus, que já é o Crucificado, perseguido por Herodes, que mata os inocentes da redondeza de Belém na louca expectativa de incluir entre eles o suposto usurpador de seu trono. Lágrimas de tantas mães se unem às de Maria ao pé da cruz e o sangue das crianças ao do Cristo flagelado e crucificado. Meditemos no que ocorre entre nós, no Rio de Janeiro, no Brasil e em todo o mundo. Há uma só diferença. Em Belém, foram soldados que ceifaram vidas e hoje, milhares de seres vivos no seio da mãe são assassinados pelo aborto. Cada Natal recorda a matança dos inocentes por ordem de Herodes tentando encontrar Jesus, salvo no refúgio do Egito. Neste colóquio diante do presépio, neste tempo natalino, peçamos ao Menino Jesus que ilumine a inteligência e comova o coração dos homens na defesa da vida.
O outro tema para esse colóquio com o Menino Jesus é a situação do nosso Brasil. Examinemos o cumprimento de nossos deveres cívicos. O grande inimigo do país é o egoísmo. Busca-se o interesse pessoal acima do bem comum. Esses e outros questionamentos devem ser examinados à luz do que São Paulo escreveu aos Gálatas: ''Ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher (...) e, porque sois filhos, enviou Deus aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: 'Abba', Pai! De modo que já não és escravo, mas filho. E, se és filho, és também herdeiro, graças a Deus'' (Gl 4,6-7).
Estas reflexões na época do Natal levam-nos a uma atitude de otimismo. Diante da realidade terrena, das imensas dificuldades do mundo de hoje, alguém que tranqüilamente contempla o presépio e escuta a voz misteriosa do Deus que se fez carne, não poderá ser dominado pelo pessimismo. Brota, então, do íntimo do ser humano um imenso grito de gratidão, de reconhecimento a esta criança, que se fez semelhante aos homens, para que nós nos assemelhássemos a Ele.
Em resumo, nós cristãos devemos resgatar o autêntico espírito natalino. Nesta época do ano, algo extraordinário percorre as nações de todo o universo. Até mesmo em povos que não reconhecem a transcendência do nascimento de Jesus há um clima de mais fraternidade entre os homens, um desejo de difundir o bem e promover a alegria espiritual.
Também é verdade haver fatores que contrariam uma recordação genuína do Natal do Senhor. Em conseqüência devemos propugnar por um restabelecimento da verdadeira celebração desse evento que traz consigo o ressurgimento de valores fundamentais ao bem-estar dos indivíduos, da família e da sociedade. Para isso, anunciamos as lições esquecidas que advêm da manjedoura. Ali há um ambiente religioso, com a presença do Menino e de seus pais, as vozes dos anjos, a homenagem dos pastores, e dos magos. Vislumbra-se uma enorme riqueza, através da pobreza do estábulo. A felicidade tem seu lugar em meio à carência de bens materiais. É o início do itinerário da redenção da humanidade, da gruta de Belém ao suplício do Gólgota e à vitória da ressurreição, completada pelo Espírito Santo no Pentecostes. A Sagrada Escritura afirma que Maria se encontrava no Cenáculo entre os apóstolos e discípulos (At 1, 14): ''Todos eles perseveravam unanimemente na oração, juntamente com as mulheres, entre elas Maria, mãe de Jesus, e os irmãos dele''. Essa figura materna continua até nossos dias, na história da Igreja. E assim permanecerá até o final dos tempos.