Título: Cinema, aspirina, Vinicius... o Brasil
Autor: Eduardo Suplicy
Fonte: Jornal do Brasil, 04/12/2005, Opinião, p. A11
Quem é atento percebe que o cinema brasileiro, com ou sem grandes apoios, cresce e nos mostra talentos novos, renova os antigos e nos dá o prazer de conhecer histórias lindas, seja na área de ficção ou na de documentários. Toda vez que vejo uma manifestação cultural brasileira recomendo a quem puder. É por isso que vou falar hoje de dois filmes da maior importância. O primeiro deles é Cinema, aspirinas e urubus, dirigido por Marcelo Gomes, com os atores João Miguel, Peter Ketnath e Hermila Guedes. Conta a história de Hans, um jovem alemão que vem para o Brasil no início dos anos 40 e, trabalhando para a empresa Bayer, coloca na traseira do seu caminhão uma máquina de projetar filmes e segue para o Nordeste, para mostrar as qualidades da aspirina, que até então mal era conhecida por aqui. Ao mesmo tempo, instala nas praças dos vilarejos um ''cinema ambulante'', coisa também desconhecida . Tudo é novidade para aquela gente simples e boa. O cinema e a cura da dor-de-cabeça. O Nordeste sofria então uma de suas piores secas, que já durava quatro anos. No céu azul sem nuvens os urubus faziam sua dança circular mirando carcaças de animais que morreram de sede. Até que um dia a chuva cai, mas a falta de esperança já havia vencido muita gente, que prefere ir embora dali. São os retirantes, que vagueiam pelo país em busca de vida melhor. O alemão Hans dá carona, gosta de conversar, vai entendendo o Brasil que conheceu num ou noutro livro de aventuras na Europa. Até que encontra um rapaz que, fugindo da seca, queria ir para o Rio de Janeiro. O filme narra a história da amizade dos dois e do seu percurso pela paisagem do sertão nordestino, além da troca cultural que vai acontecendo naturalmente. Mas o Brasil declara guerra contra a Alemanha. Chega a terrível notícia: Hans é chamado para ir à capital, o Rio, ou a São Paulo, onde deveria ser detido num campo de concentração para ser enviado de volta à Alemanha. Foi considerado ''inimigo''. Já abrasileirado, o alemão sabia que os ''soldados da borracha'' - na verdade também retirantes - iam para a Amazônia, porque os países aliados, principalmente os Estados Unidos, precisavam da nossa borracha. Ele joga fora os documentos alemães e embarca num trem para o Amazonas junto com os ''soldados'', como se fosse mais um brasileiro fugindo da seca, numa terra onde a aventura não era ficção, mas um meio de vida. Ia-se para qualquer lugar em busca da sobrevivência. O que aconteceu com o amigo nordestino vocês devem conferir no cinema, que eu não sou de contar final de filme. Cinema, aspirina e urubus é tão bom que foi o grande vencedor do Festival Internacional de Cinema que aconteceu em São Paulo no mês passado. O outro filme do qual quero falar é Vinicius, de Miguel Farias Jr., documentário poético sobre a obra, a vida, a família, os amigos e os amores de Vinicius de Moraes. Trata-se de uma obra linda, em que se ouve, na voz de Chico Buarque, Caetano Veloso, Maria Bethânia, e na interpretação de Camila Morgado e Ricardo Blat, as canções de Vinicius que mexeram - e continuam mexendo - conosco. Tem coisa mais bonita do que dizer ''De tudo, ao meu amor serei atento antes...''? O que me levou de volta à juventude, aos meus sonhos de um Brasil bom, melhor, lindo, que tinha um projeto de felicidade, foram as músicas que Vinicius fez para o filme Orfeu do Carnaval, que estreou em 1962, mas ainda fala à nossa alma. Eu tinha 21 anos e essas coisas foram tão fortes para mim que até hoje nunca as abandonei. ''Tristeza não tem fim, felicidade sim / A felicidade do pobre parece/ A grande ilusão do Carnaval...''. É como se os brasileiros arrumassem sua fantasia, fizessem tudo, para as coisas terminarem na quarta-feira. Como se estivessem vivendo momentos de dificuldades até que, de repente, um dia, tenha-se aquela bela visão que todos queremos para o Brasil, presente na introdução de outra música genial do filme: ''Manhã, tão bonita manhã/ na vida uma nova canção...'', de Luiz Bonfá e Antonio Maria. O filme mostra as melhores parcerias de Vinicius, com Tom Jobim, Chico Buarque, Toquinho, João Gilberto. Foi delicioso ouvir ''Chega de saudade'', que se tornou marco da Bossa Nova. O trabalho dos atores Camila Morgado e Ricardo Blat é impecável, assim como as músicas cantadas por Adriana Calcanhoto e Olivia Byghton. Esses dois filmes, mais Cidade Baixa, mostram momentos históricos brasileiros que explicam muito da nossa maneira de ser, através da poesia e da melhor qualidade artística. Mas não quero esquecer daquela música especial, de Tom e Vinícius, que é melhor dizer em versos: ''Eu sei que vou te amar/ Por toda minha vida eu vou te amar...''.
Eduado Suplicy escreve aos domingos no JB