Título: Inteligência contra o crime
Autor: Rafael Rosas
Fonte: Jornal do Brasil, 04/12/2005, ECONOMIA & NEGÓCIOS, p. A19

Entrevista: Gustavo Rodrigues

O advogado carioca Gustavo Rodrigues percorreu diversas partes da administração pública antes de chegar à presidência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), cargo que ocupa desde 2004. Começou no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), nos anos 80, e trabalhou ainda nos ministérios do Planejamento e da Fazenda até chegar hoje a um dos pontos mais nevrálgicos do governo. Aos 46 anos, Rodrigues passou três anos no Banco Mundial. Ele esteve na cidade, na semana passada, como anfitrião da Reunião Plenária Anual sobre Tipologias do Grupo de Ação Financeira (Gafi) e do Grupo de Ação Financeira da América do Sul (Gafisud). E afirma que o Brasil se destaca no combate à lavagem de dinheiro. Segundo diz, apesar de o Coaf ser vinculado à Fazenda, nunca sofreu ingerência. ¿A questão é: tem indício de crime, mande à frente, não importa quem esteja envolvido¿. Mas não pestaneja quando se pergunta se são necessárias mudanças: ¿O Coaf poderia ser uma autarquia, como agência reguladora¿, sugere. Confira os principais trechos da entrevista ao JB.

Qual a composição do Coaf?

O Coaf é composto por Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Polícia Federal, Banco Central, Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Susep, Secretaria de Previdência Complementar, Ministério da Justiça, Procuradoria da Fazenda, Receita Federal, Ministério das Relações Exteriores e Controladoria Geral da União. Trabalhamos este ano para ter acesso ao sistema do Ministério da Previdência, que registra quem paga INSS. A partir deste ano começamos a ter acesso aos dados da PF. Há o esforço de conseguir ao máximo o acesso à informação. A internet e os jornais também são fontes preciosas de informação.

Como os bancos colaboram com o esforço contra a lavagem de dinheiro?

A expressão fundamental deste rastreamento é conhecer o seu cliente. Os bancos têm que saber se as operações dos clientes são normais. Qualquer movimentação estranha é informada às autoridades competentes.

Como o Coaf se encaixa na luta contra lavagem?

A experiência internacional mostrou que esta relação (entre bancos e autoridades) criava alguns problemas. Quem passa estas informações são funcionários de bancos, que não são treinados para investigação. Enquanto isso, polícia e Ministério Público são entidades que, sempre que recebem alguma informação, consideram como notícia crime e iniciam um processo. A solução foi criar, há cerca de dez anos, as unidades de inteligência financeira, como o Coaf. Em 1995 eram quatro ou cinco no mundo, hoje são 101 reconhecidas internacionalmente. O papel destas unidades de inteligência é intermediar esta relação entre bancos e órgãos de investigação.

Como o Coaf separa as informações relevantes das demais?

Em princípio, o banco deve tentar saber o porquê da movimentação atípica, mas o cliente pode se recusar a dizer. Aí eu sou informado sobre a recusa, mas isso não quer dizer que o cliente seja um criminoso. Para que eu pegue a informação e mande adiante, eu tenho que ter algo que a fundamente. Para fazer isso eu cruzo com bancos de dados da Receita Federal, Polícia Federal e Incra, entre outros. Eu junto informações que muitas vezes os bancos não têm. Existem dados que você olha e diz: este é bandido. Mas aí, quando você cruza os dados dos bancos com outros, você descobre que a operação foi gerada por venda de imóvel, por exemplo e descartamos como não suspeita. No mundo inteiro o sistema funciona assim.

Durante a CPI dos Correios, houve críticas em relação ao Coaf, que só disponibilizou os dados depois que eles surgiram na mídia...

Em outubro de 2003, o Coaf já havia informado o Ministério Público de São Paulo que uma das empresas do grupo (de Marcos Valério) estava realizando saques substanciais. Isso foi antes de eu entrar no Coaf. Depois, o Coaf continuou acumulando informações, mas nunca mais ninguém perguntou nada. Até que saiu a informação nos jornais e aí nós tomamos conhecimento de que aquilo poderia estar relacionado a outras coisas. Imediatamente mandamos as informações para as autoridades. Por que o Coaf não agiu pró-ativamente? Nós agimos, em outubro de 2003, e mesmo que eu tivesse agido em abril de 2005, acho que dificilmente adiantaria alguma coisa. A gente vê o próprio esforço que foi feito na CPI por exemplo, com todos os poderes que ela tem de investigação e quebra de sigilo, mas ainda assim há uma grande dificuldade de identificar a verdade. Eu tenho profissionais trabalhando na análise das informações financeiras. Eles não são videntes. A realidade se mostrou amplamente superior à imaginação de muita gente.

Que setores prestam informações ao Coaf?

Não apenas o sistema financeiro, mas o de seguros, mercado de capitais, factoring, previdência, joalherias. Os bancos são os mais importantes no mundo inteiro, mas não são os únicos

Quais os tipos de informação que são passadas?

No setor bancário há outro tipo de informação que não é a suspeita. É a comunicação de movimentação em espécie. Voltando ao assunto da CPI, nenhuma daquelas comunicações era suspeita. Elas eram movimentações em espécie, o que é parte das operações regulares de muitas empresas. O que quero chamar a atenção é que essas operações não tinham o elemento da suspeição. Elas foram enviadas ao Coaf por um critério matemático. Então elas não são a fonte prioritária da análise, elas são a fonte complementar. No momento que eu recebo uma comunicação suspeita, eu verifico tudo o que eu tenho sobre esta empresa, inclusive as operações em espécie. Nesse caso, até estourar o escândalo, nunca havíamos recebido nenhuma comunicação suspeita.

Quantas comunicações o Coaf recebe por ano?

Saímos de 5.400 em 2003 para mais de 7 mil em 2004. Até junho deste ano o Coaf já tinha recebido tanto quanto em todo o ano passado. Hoje estamos na faixa de 10 mil e devemos acabar o ano na faixa de 14 mil operações suspeitas. Em espécie já temos 120 mil operações. Nos outros setores as comunicações são menores. Alguns não comunicam nada, como as joalherias e lojas de antigüidade. Nosso próximo esforço será com as imobiliárias. Elas mantêm um volume de comunicações em torno de 600 por ano, o que consideramos incompatível com o porte do setor. Já temos uma resolução pronta que discutimos com associações do setor. Queremos que todos entendam que não cabe ao Coaf pegar as empresas criminosas. Isso é trabalho para a polícia. O trabalho do Coaf é evitar que as empresas legítimas, de pessoas de bem, sejam usadas por bandidos.

Como as exportações são usadas para lavar dinheiro?

Esta pergunta tem ligação com o evento que promovemos. O Gafi, que reúne 33 países e define a política internacional de combate à lavagem de dinheiro, tem vários grupos de trabalho, entre eles o de tipologia, que se propõe a discutir tipologias de lavagem e financiamento do terrorismo. Este grupo tenta determinar como é o modus operandi de algumas transações. Dentro deste grupo há cinco subgrupos trabalhando, um deles o de lavagem de dinheiro relacionado ao comércio. Há grupos que discutem novos meios de pagamento, como cartões eletrônicos, e como isso pode ser usado para lavar dinheiro.

Quantas informações são passadas pelo Coaf por ano?

O Coaf gera dois tipos de informação. A primeira é o ofício, gerado por conta própria. Crescemos de 123 em 2003 para mais de 400 em 2004 e este ano já superamos as 600. Além disso, tem outro sistema que permite intercâmbio de informações com autoridades, que nos fornecem dados e nós cruzamos com os nossos bancos de dados.

O Brasil é bem sucedido no combate à lavagem de dinheiro?

O Brasil não tem que ter vergonha não. Em julho de 2004 houve a avaliação do Brasil pelo Gafi. Nessa avaliação, 30 recomendações recebem nota. O Brasil teve a melhor nota em 20 e a segundo melhor nota nas outras 10. Se valesse de zero a dez, o Brasil teria tirado uns 8,5. A nossa parte mais frágil é no combate ao financiamento do terrorismo. Já melhoramos porque ratificamos este ano a Convenção das Nações Unidas, que foi um passo importante. O problema é que nossa lei relacionada ao assunto é a Lei de Segurança Nacional, que é dos anos 80 e está bastante ultrapassada para os padrões modernos. A revisão da lei é uma prioridade.

A região da Tríplice Fronteira, entre Brasil, Argentina e Paraguai, é um problema no que diz respeito a atividades ligadas ao terrorismo?

A região da Tríplice Fronteira tem grande criminalidade. Existe um grupo, chamado Três mais Um, formado por Brasil, Argentina, Paraguai e Estados Unidos, que tem se reunido e não identificou na região nenhuma operação de financiamento de terrorismo. A próxima reunião do Três mais Um será nos próximos dias 5 e 6 e o Coaf participará do encontro.

A carga tributária não seria um impedimento para que se lavasse dinheiro estrangeiro aqui dentro?

Não é que seja um impedimento. A questão é que se você puder lavar em um país como Bahamas, por exemplo, melhor, porque você não precisa pagar imposto. Você lava o dinheiro e paga muito pouco. No Brasil você terá que pagar um imposto mais alto. É uma questão de preço, você vai escolher o mais barato. Parece engraçado, mas o Brasil está muito mais avançado que países mais ricos em algumas áreas, às vezes pelos motivos errados. Por exemplo, no Brasil o regime de câmbio já foi muito controlado, ou seja, o país já identifica as transferências de câmbio desde os anos 60, enquanto em outros lugares só agora isto está sendo implementado.

E a questão das punições? Como está o Brasil no que diz respeito ao passo seguinte à identificação de operações criminosas?

Estamos avançando muito. Há pouco tempo se dizia que o Brasil não tinha nenhuma condenação. Isso não é verdade. Temos várias condenações, só que ainda não transitadas em julgado, até a última instância. O crime de lavagem de dinheiro não é tão óbvio assim. Vamos comparar com o homicídio, que talvez seja o crime mais antigo da humanidade, está no Código Penal desde que este foi criado. Está inclusive na Bíblia! Há casos em que a polícia tem o réu confesso, o corpo, a arma e o julgamento se arrasta por anos. Agora vamos passar para a lavagem de dinheiro. As provas são muito mais complicadas. Não é a impressão digital, mas o rastreamento, em provas contábeis. Além disso temos problemas ligados ao processo judicial brasileiro, que é lento. Você querer julgar o resultado do trabalho só por isso é complicado.

Há interferência política ou qualquer ingerência, já que o órgão está diretamente vinculado ao governo?

O tempo mostra a nossa independência. Falo por mim. Do ponto de vista estrutural, o Coaf é vinculado ao Ministério da Fazenda. Consta inclusive no livro do FMI (Fundo Monetário Internacional) que o sistema adotado no Brasil visa a reduzir interferência. O presidente do Coaf é indicado pelo ministro da Fazenda e nomeado pelo presidente da República. Não tenho mandato, posso ser exonerado. Mas posso falar por mim. Nunca recebi nenhum tipo de influência política e sempre fiz o que minha consciência me disse que deveria fazer. A questão é: tem indício, mande à frente, não importa quem seja.

São necessárias mudanças do ponto de vista estrutural?

Acho que sim. O Coaf poderia ser uma autarquia, ter alguma forma de mandato. Poderia funcionar como uma agência reguladora. É aquela história: não basta ser honesto, tem que parecer honesto. As pessoas têm que ver um sistema honesto. Asseguro que ele é honesto, mas do ponto de vista do desenho institucional, a evolução natural seria o Coaf na linha de uma agência reguladora.