Correio Braziliense, n. 21863, 25/01/2023. Brasil, p. 5
Vítimas da corrupção
Tainá Andrade
Kelly Hekally
A situação crítica dos ianomâmis está associada a um esquema de corrupção de compra e fornecimento de medicamentos, que deveriam ser entregues aos povos nativos. A afirmação é dos procuradores federais Alisson Marugal e Matheus de Andrade Bueno, do Ministério Público de Roraima (MP-RR), segundo os quais estariam envolvidos os ocupantes dos cargos de coordenação dos Distritos de Saúde Especial Indígena (DSEI) — que são preenchidos por indicação política.
“Esses distritos, por terem orçamentos grandes, são assediados e a nomeação é feita pelo Ministério da Saúde. Havia políticos que nomeavam os coordenadores de saúde e loteavam cargos-chaves para manipular as licitações. Há uma organização criminosa”, acusou Marugal.
Os DSEIs são subordinados, no Ministério da Saúde, à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que no governo do presidente Jair Bolsonaro foi coordenada por dois militares. Segundo Marugal, o esquema, se não tinha o poder de enriquecer os agentes, em contrapartida impacta profundamente as comunidades, pois afeta o recebimento de medicamentos básicos em distritos de áreas isoladas de Roraima.
“Eles (os gestores públicos) sabiam da crise de desnutrição, mas, mesmo assim, engendraram um esquema de corrupção com os medicamentos. Não era grande o lucro em dinheiro — gerava cerca de R$ 3 milhões. Mas me chocou profundamente a insensibilidade por desviarem tão pouco e causarem uma crise tão grande”, afirmou Marugal.
As investigações da corrupção em Roraima levaram o MPF a recomendar uma intervenção no setor que cuida da saúde indígena no Ministério da Saúde, mas a ideia não foi levada adiante. “Deveríamos discutir, junto com a Funai e a sociedade civil liderando, uma grande solução para a situação de emergência pública. Mas encontramos muita resistência na Sesai para medidas que pudessem dar visibilidade para a gravidade do que, de fato, aconteceu com os ianomâmis, que muito provavelmente é um crime”, observou.
Segundo o procurador, a primeira etapa da Operação Yoasi, realizada no ano passado, investigou a falta de medicamentos que constam na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) junto aos pólos-base da terra ianomâmi e à Casa de Saúde Indígena (Casai), em Boa Vista. A apuração conjunta com a Polícia Federal (PF) afastou os gestores que deixavam faltar remédios básicos nos postos de saúde e deixavam de punir fornecedores que não repunham os estoques.
O MP-RR acredita, porém, que o aprofundamento da investigação levantará mais pessoas envolvidas com os desvios. “Existe um grande conluio, um grande loteamento político desses distritos”, apontou Marugal.
Visita a garimpo
O governo Bolsonaro tornou-se alvo de um inquérito da PF requerido pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP). O documento não cita nomes, mas faz menções à gestão do ex-presidente e ainda se refere a uma viagem que ele fizera a um garimpo ilegal que funcionava na terra dos ianomâmis.
Em ofício despachado na segunda-feira determinando a abertura de investigação, o ministro Flávio Dino argumenta que houve crime de genocídio e omissão de socorro contra os povos originários de Roraima por Bolsonaro e seu governo. O documento foi remetido ao diretor-geral da PF, Andrei Passos Rodrigues.
Desde junho de 2020, a pedido da Procuradoria da República de Roraima, tramita uma ação sobre a situação dos ianomâmis contra a Agência Nacional de Mineração (ANM), a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a União.
Para embasar o pedido de abertura de investigação, Dino cita um estudo, de 2021, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Instituto Evandro Chagas (IEC) e da Universidade Federal de Roraima (UFRR) apontando a extrema contaminação dos peixes retirados da Bacia do Rio Branco, onde se localiza parte do território ianomâmi. O ministro também argumenta que “a região é severamente afetada” pela extração de minerais sem autorização da ANM, “o que, além da violência contra os povos indígenas, contribui para a desnutrição desses povos, na medida em que a extração do minério com mercúrio contamina os rios, mata animais e impacta a disponibilidade de alimentos”.
Quinhentos e cinquenta ianomâmis morreram em decorrência da desassistência médica. No último dia 20, foi decretado estado de emergência de saúde pública no território.