O Globo, n. 32524, 24/08/2022. Política, p. 14-15

Valores pesam mais no voto evangélico

Marina Dias


O calor úmido de Manaus dominava a saída do culto do meio-dia da Igreja Universal do Reino de Deus, fundada pelo bispo Edir Macedo. O templo na capital amazonense chama a atenção pela estrutura colossal. Em uma das principais avenidas que leva ao centro da cidade, as colunas e palmeiras abrem alas para um salão que tem capacidade para seis mil pessoas, que se revezam em ao menos sete cultos por dia, de segunda a domingo.

Fátima Maria da Conceição, de 66 anos, é uma das frequentadoras mais assíduas. Vai à igreja quatro vezes por semana, há quase três décadas. Ela procurou a Universal porque estava com depressão e tinha episódios de insônia. Hoje, diz que a vida emocional melhorou, mas o movimento na loja de material de construção do marido tem sofrido com a crise econômica. Para a dona de casa, economia e moral andam juntas na hora de escolher um candidato, mas hoje, sob ameaça, os valores da família precisam prevalecer.

— Os valores da família estão caindo por terra. As pessoas que não têm Deus não valorizam a família. (Jair) Bolsonaro (PL) é a favor da família, o que é muito importante.

O sentimento reflete a complexidade eleitoral dos evangélicos. Trata-se de 27% da população brasileira (no Norte do Brasil chega a 39%) e que, em 2018, votou massivamente em Bolsonaro. Agora, o grupo deve repetir a escolha mesmo com o aumento da pobreza e o desemprego alto no país. Embora ainda distante da marca alcançada quatro anos atrás, quando angariou quase 70% do apoio no segmento religioso, o presidente segue pontuando muito acima dos adversários entre os fieis. Pesquisa Datafolha deste mês revela que, depois de um período de quase empate técnico com o expresidente Lula (PT) entre os evangélicos, Bolsonaro abriu 17 pontos de vantagem sobre o petista entre os cristãos (49% a 32%).

O presidente entendeu o peso que as igrejas podem ter na busca pela reeleição e, desde julho, centrou boa parte de seus esforços nos evangélicos. Foi a eventos como a Marcha para Jesus, em São Paulo, Rio e Manaus, e escalou a primeira-dama, Michelle, que é evangélica, para falar diretamente com as mulheres (58% do nicho religioso e que têm rechaçado o presidente de forma mais acentuada que os homens). Por fim, temperou os pedidos de votos apostando na narrativa que o impulsionou há quatro anos: ele é o bem, Lula, o mal.

Desde 1986, o “Café da Comunhão” acontece quinzenalmente em Manaus, reunindo pastores, bispos e lideranças evangélicas que se revezam para acomodar o evento em suas igrejas. De acordo com a Omeam (Ordem dos Ministros Evangélicos do Amazonas), a cidade reúne quase nove mil igrejas evangélicas. Na manhã de 6 de julho, o pastor Sadi Caldas, da Assembleia de Deus, era anfitrião e aniversariante. Comemorou os 68 anos com 50 pessoas espalhadas em um salão com cadeiras e mesas de plástico, enfeitadas com flores vermelhas. Convidada ao evento, uma fiel aguardava o início da fala de Caldas enquanto assistia no celular a uma animação barulhenta que relacionava Lula ao publicitário Marcos Valério, operador do mensalão. Tinha acabado de receber o vídeo de um grupo de que participa no WhatsApp, o Bolsonaro 2-AM.

Às 9h, o pastor Sadi Caldas fez uma saudação, avisou aos convidados sobre a presença da reportagem, e iniciou o culto, que contou com uma oração de bênção às autoridades. — Queremos orar e interceder por esses homens, desde o nosso presidente da República até o nosso governador e o prefeito — disse o pastor Sérgio Antônio, da Igreja Comunidade Viva Pai. —Eu Te peço, afaste deles todos aqueles homens que só podem leválos para a corrupção e traga para perto deles homens de Deus, íntegros, em nome de Jesus (...) Não nos deixe, como igreja, levantar pecadores, errados, feiticeiros, que levantemos homens e mulheres de Deus.

Entre os abençoados, só nomes de direita — além do presidente, o governador do Amazonas, Wilson Lima, do União Brasil; e o prefeito de Manaus, David Almeida, do Avante. A cena se repete nos últimos meses nas principais igrejas brasileiras, em uma campanha aberta não só por Bolsonaro, mas contra políticos de esquerda. Semanalmente, o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, grava vídeos ligando o PT a escândalos de corrupção. Distribuído em cultos, o jornal Folha Universal, ligado à igreja de Edir Macedo, vem publicando uma série de matérias dizendo que Lula pode implementar uma “ditadura comunista” no Brasil. Na semana passada, o pastor e deputado federal Marco Feliciano (PL-SP) afirmou que igrejas poderão ser fechadas caso o PT ganhe as eleições — a notícia falsa viralizou entre os fiéis que têm escalado seus temores a níveis de pânico.

Uma das principais preocupações de Áurea Rodrigues Paes da Costa, de 69 anos, por exemplo, é que seja aprovada uma lei que obrigue todos os ambientes públicos a disponibilizarem banheiro unissex. Na saída de um culto da Universal em Manaus, ela conta que é casada com uma pessoa que conheceu em um clube noturno da cidade há 25 anos, “quando me desviei um pouquinho da igreja”.

— Ele é um travesti, um ex-travesti na verdade, e eu lutei muito para trazer ele para a igreja. Muita gente me censurou, mas outra parte disse que ele era uma vida que precisa de Jesus. Mas nenhum de nós quer banheiro unissex.

Foi na ambiguidade de Áurea que ouvimos a explicação de uma das notícias falsas sobre Lula que mais circula entre os evangélicos —a de que o petista teria feito “pacto com a besta”. Áurea se refere a um vídeo de 2021, que foi editado para que frases do ex-presidente fossem tiradas de contexto e dessem a impressão que ele diz que fez um pacto com o diabo.

A fala original, dita por Lula em um evento com lideranças de religiões de matrizes africanas, é a seguinte: “Me entregaram um Xangô (divindade cultuada nas religiões afro-brasileiras) e, nas redes sociais do bolsonarismo, eles tão dizendo que eu tenho relação com o demônio, que eu estou falando com o demônio, que o demônio está tomando conta de mim (…)” Com cortes e edição, o que sobra — e choca os ouvidos de Áurea — é: “estou falando com o demônio, e o demônio está tomando conta de mim”.

Ainda que os grandes líderes evangélicos se portem como se os fiéis fossem rebanhos influenciados por eles, há no chão de diversas denominações exemplos que mostram um caminho oposto. Cristãos que têm suas opiniões formadas e são farejados pelos pastores, que, então, fazem a pregação.

O bispo Carlos Lisboa, 53, e a mulher, a apóstola Rosângela, 54, foram transferidos de São Paulo para comandar, na capital amazonense, a Renascer em Cristo, da bispa Sonia e do apóstolo Estevam Hernandes. Lisboa apoia Bolsonaro, mas diz que os evangélicos não são um grupo monolítico. Afirma que as pessoas têm experiências e situações socioeconômicas diferentes e, para o voto, podem levar em consideração resultados do governo. Mas, na avaliação dele, os valores ainda precisam se sobrepor diante da urna.

— Querem colocar os evangélicos em uma mesma caixa, mas os evangélicos são seres pensantes. Cada um tem sua opinião, respeitamos todas, mas não concordamos com todas. O que orientamos é: uma árvore se conhece pelo fruto, então veja quem se identifica com seus valores.

A socióloga Esther Solano, que faz pesquisas com eleitores evangélicos há anos, afirma que o alto clero das igrejas pentecostais e neopentecostais passou a se ver como protagonista de poder e entendeu que ninguém mais governa sem eles. Há, contudo, um risco, tendo em vista que as rodadas de entrevistas que ela tem feito já detectam fiéis insatisfeitos de ver política usada em demasia nos cultos.

O excesso deve soar como alerta para o manejo bem-sucedido que Bolsonaro vem fazendo,desde2018,daspautasidentitárias entre os evangélicos. O discurso que varreu igrejas há quatro anos —e segue ecoando hoje —foi o de que, em caso de vitória do PT, o aborto seria liberado, assim como as drogas e o casamento gay. Mais: as escolas sexualizariam as crianças e incentivariam debates sobre diferenças entre o sexo biológico e o gênero.

Solano diz que, para entender a influência dessa batalha espiritual sobre o voto dos evangélicos, é preciso considerar que essa parcela da população acredita que os princípios e o lugar de pertencimento deles no mundo estão ameaçados.

— E isso é questão de vida ou morte, porque não há nada mais importante do que pertencer. E também não há nada mais potente do que o medo de ver sua família sendo desvirtuada.

Para definir o voto, os evangélicos navegam entre a segurança material, ou seja, perspectiva de emprego e renda, e a segurança moral e de valores, que envolve família, ordem e fé. Na decisiva batalha espiritual, porém, quem vence é Bolsonaro.

— A solidez do voto em Bolsonaro está nisso: por mais que tenha inflação e crise, eles continuam apegados ao presidente, não importa o que ele faça — diz a socióloga.

Sileide Marinho Xavier gostava de ter uma igreja no quintal. A dona de casa de 49 anos era guardiã das chaves da Igreja Pentecostal Unida do Brasil, instalada em uma pequena construção ao lado de sua varanda, a 40 quilômetros de Manaus. Evangélica desde os 16 anos, preferia quando bastavam alguns passos para fazer orações no dia e na hora em que bem entendesse.

Mas Sileide precisou mudar de hábito. A igreja foi transferida para o trecho urbano da cidade de Iranduba — ela vive na zona rural —, e um ônibus arranjado pelo pastor agora leva os fiéis ao culto pelo menos quatro vezes por semana. Com os deslocamentos, ela tem menos tempo para se dedicar à horta em que planta alface e temperos para vender aos vizinhos. A renda principal da casa são os R$ 600 do Auxílio Brasil, programa de transferência de renda do governo federal que substituiu o Bolsa Família. Soma-se a isso o dinheiro que o marido ganha com serviços de pedreiro, e o casal divide tudo com quatro filhos, duas noras e dois netos.

Sileide conta que já votou em Lula, mas, em 2018, foi de Bolsonaro por orientação do pastor. O líder religioso disse que o atual presidente representava valores caros à comunidade evangélica e evitaria a legalização do aborto, das drogas e do casamento gay. Convenceu Sileide.

Quatro anos depois, o cenário mudou. Atingida em cheio pela crise econômica, ela não quer repetir o voto, mas não sabe o que vai fazer diante da urna em outubro.

— Ainda não tenho candidato, só não vou votar no Bolsonaro de novo. Tem que ter uma mudança. Se continuar assim, aonde vamos parar?

A esquerda e Lula têm tido dificuldade em se conectar com os evangélicos. A coordenação da campanha do expresidente não sabe se é melhor fazer algum tipo de discurso voltado a pastores e fiéis ou se basta apostar no fato de que muitos evangélicos pobres vão escolher Lula por causa da crise econômica.

É o caso de Regiane Xavier de Oliveira. Ela precisa remar por meia hora quando o rio está cheio para ir à igreja Adventista de Iranduba, perto de Manaus. Faz o percurso todo domingo, acompanhada do mais velho de seus três filhos. Aos 35 anos, vive do que planta e pesca à beira do Rio Amazonas e diz que nunca pensou em como os valores que debate na igreja poderiam influenciar no voto.

Seu raciocínio é sobre dinheiro no bolso, e sua memória é do tempo em que não tinha energia elétrica em casa. Ela conta que gastava boa parte da renda para comprar gelo para armazenar a comida e que a vida melhorou durante os governos do PT.

— Lula colocou luz e deu crédito, e agora a gente tem geladeira, televisão e um ventilador. Bolsonaro fala muita besteira. Depois, ele pensa e pede desculpa, mas aí já foi.