Título: Do 174 ao 350: o reinado da barbárie
Autor: Maria Clara L. Bingemer
Fonte: Jornal do Brasil, 05/12/2005, Outras Opiniões, p. A11

O final do dia quente e trabalhoso enchia os corpos de sono e cansaço. Os 25 estudantes e trabalhadores que voltavam a suas casas no interior do ônibus 350, passando por Brás de Pina, sentiam o sono fechar-lhes os olhos e amolecer-lhes os corpos num torpor modorrento.

O despertar foi cruel e impiedoso. Após um dia cansativo de trabalho, a funcionária da Marinha Karina de Araújo Duarte, de 20 anos, escutou alguém ordenar-lhe: ''Desce!''. Só então percebeu que o ônibus em que voltava para casa estava sendo incendiado e lhe restavam poucos minutos para escapar com vida. Doze bandidos expulsaram o motorista, que saiu sem abrir as portas, e transformaram o ônibus em uma bola de fogo e fumaça.

Para vingar a morte de um bandido pela PM, ocorrida no mesmo bairro no final da tarde daquele dia, o bando interceptou o ônibus, jogou gasolina e ateou fogo. Em meio ao pânico e à rapidez com que as chamas se espalharam, matando rapidamente muitos dos passageiros, alguns conseguiram escapar graças à rapidez dos reflexos do jovem Igor, que conseguiu arrombar a porta e salvar a namorada e vários outros. Mas muitos sucumbiram à violência das chamas.

Wania Barbosa, carregando nos braços a filhinha Vitória de um ano, gritava para que abrissem a porta. Foi encontrada morta deitada sobre o corpo da filha, tentando protegê-la das chamas. O que tinha a pequena Vitória a ver com a morte do bandido? O que tinham seus pais, trabalhadores, casal que se amava e que amava a filha pequena, a ver com a guerra entre bandidos e bandidos, entre bandidos e policiais, enfim a guerra que transforma a cada dia mais o maravilhoso Rio de Janeiro em uma cidade difícil de se viver? O que têm as vítimas inocentes a ver com o terror e a barbárie que as alcança mesmo nos momentos mais cotidianos de suas honestas e pacatas vidas?

Um dia depois, o revide que tenta compensar a violência com mais violência entregou cinco cadáveres à polícia, supostamente dos autores do crime. Sejam ou não, isto não importa. E, certamente, não é o caminho adequado para tratar do gigantesco problema da guerra urbana que tomou conta da cidade.

Quando os traficantes vingam as mortes ocorridas em seu bando queimando viva a população civil, fica claríssimo que se perdeu todo laivo de respeito pelas autoridades encarregadas de reprimir o crime e a violência. A polícia ou seu equivalente não merece mais nenhuma atenção e não inspira nenhum temor. Ou seja, é totalmente incapaz de realizar o trabalho para o qual existe, qual seja: garantir a segurança e a tranqüilidade dos cidadãos que a sustentam com seus impostos.

O ataque ao ônibus em Brás de Pina mostra mais um patamar da escalada da violência no Rio. Se antes a população era vítima de balas perdidas e dos protestos promovidos pelos traficantes nas vias expressas e nos túneis, agora inocentes viram alvo de bárbaros ataques e são queimados vivos em represália às baixas ocorridas nos quadros do tráfico.

Comprova, por outro lado, que coibir a violência com mais violência não leva a nada e só faz piorar a situação terrível em que se encontra a cidade. É hora de colocar como prioridade zero a retomada da cidade com reflexão séria e determinação política inquebrantável. Chega de discussões fúteis e conjeturas inócuas. Não está claro que a represália violenta não traz nenhuma solução para o problema? Não bastou a morte da jovem Geisa no macabro episódio do ônibus 174, anos atrás? Não basta a frágil pequena vida de Vitória ceifada antes de poder desabrochar? Não basta o terror que se instaurou e que faz certos locais da cidade funcionarem como que em estado de sítio, com toque de recolher e outros requintes de detalhes que só se vêem em situações de beligerância e regimes de exceção?

O tempo litúrgico do Advento que a Igreja começa a celebrar nesta semana parece selar o aterrador acontecimento do ônibus 350 com a palavra de ordem da vigilância. É preciso vigiar e perceber que importa resgatar a confiança da população nas autoridades encarregadas de reprimir o crime. E entender que a escalada de violência não pode continuar sob pena que vá atingindo limites cada vez mais assustadores. Se não houver disposição e vontade política de assim fazer, talvez a única saída seja reconhecer que a cidade já está irremediavelmente sob o poder dos marginais.