Título: Pelo direito à maternidade
Autor: Alexandre Kapaun
Fonte: Jornal do Brasil, 05/12/2005, Outras Opiniões, p. A11

O aborto é discutido a partir de uma falsa perspectiva em nosso país, o que tem impedido uma solução imparcial, democrática e justa para o problema de sua legalização. Em primeiro lugar, tenho de admitir que, devido à minha condição masculina, nesta questão, parto de uma condição epistêmica desprivilegiada e, portanto, não me considero apto para interferir (aliás, neste particular, homem algum estaria apto) decisivamente na decisão de seguir, ou não, como uma gravidez indesejada. Na verdade, algumas teóricas feministas defendem que as mulheres têm a possibilidade de conhecer a realidade a partir de uma posição epistêmica privilegiada. Da mesma forma que o escravo, na filosofia de Hegel, ou o operário, no pensamento marxista, as mulheres, devido à sua condição de grupo social (gênero) oprimido, teriam capacidade para compreender a sua realidade e a do opressor, já que elas viveriam, ao mesmo tempo, em ambos os mundos: o seu próprio e o dos homens. Já estes últimos viveriam apenas a sua própria realidade e desconheceriam as especificidades do mundo das mulheres. Em última instância, só quem pode decidir se deve abortar ou não é a própria mulher em questão. Nenhum homem, nem a Igreja e nem o Estado podem tomar a decisão final por ela.

Em segundo lugar, não se trata apenas de uma questão religiosa, como querem nos fazer crer os fiéis das diversas religiões que pregam pela não legalização do aborto. Melhor dizendo, trata-se de uma questão que deverá ser resolvida pela consciência individual de cada mulher, a partir de sua religiosidade ou não, no caso das nãos-religiosas.

A República Federativa do Brasil é um Estado laico e que permite a liberdade religiosa dos seus cidadãos. Questões de crença deveriam se limitar à consciência de cada um, não afetando a liberdade de crer (ou de não crer) dos demais cidadãos brasileiros. Em nosso país, a Igreja Católica procura se impor, não apenas sobre os seus fiéis, mas sobre toda a sociedade, em todos os assuntos que dizem respeito à reprodução humana. Para a Igreja, o direito à vida do nascituro - que, numa visão ecológica, só deveria se tornar realidade a partir do momento em que o feto fosse capaz de sobreviver fora do útero - torna-se um valor absoluto, a partir da fecundação e antes mesmo da célula-ovo se fixar no útero. Nesse estágio, ainda nem é certo que o zigoto vá sobreviver. Como poderia, então, um ser que pode nem vir a existir ter mais direitos que a mulher que o carrega?

De outro lado, não creio que o aborto possa ser visto como um mero problema de saúde pública, o que nos levaria a legalizá-lo apenas para que se evitassem os milhares de procedimentos abortivos feitos ilegalmente - e, muitas vezes, sem nenhuma condição de higiene - em nosso país. Não que este não seja um problema grave. Mas não penso que se possa legalizar o direito ao aborto a partir de uma ética meramente utilitarista. Em outras palavras, não se pode legalizar o aborto apenas porque muitas pessoas abortam. Devemos legalizar o aborto por que consideramos justa a sua legalização.

Devemos, sim, legalizar o aborto, porque esta é uma questão intimamente ligada aos direitos reprodutivos das mulheres. A legalização deste direito deve estar associada aos direitos que as mulheres, enquanto pessoas livres, devem ter sobre os seus próprios corpos e sobre a sua sexualidade. A Conferência Mundial da Mulher, promovida pela ONU, em Pequim, no ano de 1995, em seu Plano de Ação (documento que o Brasil assinou), assegura que o aborto é uma questão de saúde pública, intimamente ligada à liberdade sexual e aos direitos reprodutivos das mulheres. Falta, ainda, tornar estes direitos uma realidade para a mulher brasileira. Assim, mulher alguma ver-se-ia obrigada a ser mãe. Afinal de contas, a maternidade deve ser encarada como um direito, nunca como uma obrigação.