O Globo, n. 32527, 27/08/2022. Política, p. 4

Fome no mapa eleitoral

Jeniffer Gularte
Jussara Soares
Fernanda Trisotto
Camila Zarur
Julia Noia
Kathlen Barbosa
Luã Marinatto


No primeiro dia de campanha na TV, a fome foi o tópico mais discutido, com presença em inserções do ex-presidente Lula (PT) e respostas do presidente Jair Bolsonaro (PL). Ele falou sobre o tema três vezes. No programa “Pânico”, disse que não se veem pessoas pedindo pão e, em entrevista a podcast, afirmou que não existe “fome para valer” no país. Dados mostram que 33,1 milhões de pessoas passam fome. Bolsonaro também chamou de “conversa mole” a promessa de Lula de que os brasileiros voltarão a comer picanha.

Titular do Planalto e, por isso, dono do trunfo de poder propagandear o Auxílio Brasil de R$ 600 que serve para socorrer brasileiros em situação de emergência, o presidente Jair Bolsonaro (PL) usou o benefício em sua estreia nas inserções de TV, mas derrapou em declarações públicas ontem ao minimizar a gravidade do problema e mesmo pôr em dúvida a realidade da fome no país. Urgência de cerca de 30 milhões de brasileiros, o tema ganhou protagonismo na corrida presidencial nos últimos dias, e a campanha do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) distribuiu nas redes e em aplicativos de mensagens uma peça publicitária que mostra comida sumindo do prato das famílias, numa reciclagem de um filme te usado pela primeira vez em 2014.

Bolsonaro e Lula também tiveram duelo retórico sobre “picanha” e “filé mignon”, a primeira usada pelo petista para ilustrar a promessa em seu eventual governo, e o segundo utilizado pelo presidente para rebater a frase adversária. Bolsonaro abordou o assunto em três ocasiões ontem. Ele rebateu a ideia defendida por seu principal adversário, pregou que não vê pessoas pedindo alimento pelas ruas e, na mais controversa das colocações, chegou a dizer que não existe no Brasil o que chamou de “fome para valer”.

- Fome no Brasil? Fome pra valer. Não existe da forma como é falado. O que é a extrema pobreza? É você ganhar até 1,9 dólares por dia. Isso dá R$ 10. O Auxílio Brasil são R$ 20 por dia. Então, quem por ventura está no mapa da fome, pode se cadastrar e vai receber. Não tem fila. São 20 milhões de famílias que ganham isso aí — afirmou o presidente em entrevista ao Ironberg Podcast. De acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, divulgado em junho, 33,1 milhões de cidadãos passam fome atualmente no país, patamar equivalente ao de três décadas atrás. O mesmo levantamento apontou que 125,2 milhões de brasileiros vivem com algum grau de insegurança alimentar — ou seja, não têm acesso pleno e regular aos alimentos de qualidade, em quantidade suficiente. O número corresponde a 58,7% da população. Mais cedo, Bolsonaro já havia afirmado, no programa Pânico, que não se encontra pessoas “pedindo pão” nas padarias.

— Se a gente for em qualquer padaria, não tem ninguém ali pedindo pra você comprar um pão. Isso não existe —disse, acrescentando que a frase lhe tiraria votos. A tentativa de minimizar a fome no país se choca com a estratégia de amplificar os efeitos da distribuição do Auxílio Brasil de R$ 600 à população mais pobre. O presidente da República também sustentou, durante um evento na Associação Comercial de São Paulo, que “não tem filé mignon para todo mundo”, ao comentar uma declaração dada por Lula no dia anterior:

— Acredita nessa conversa mole de que você vai ter tudo, ‘vou passar gasolina para R$ 3, todo mundo vai comer picanha todo final de semana’? Não tem filé mignon para todo mundo —disse. Em entrevista ao Jornal Nacional, na quinta-feira, Lula afirmou que o brasileiro precisa retomar as condições para fazer churrasco.

— O povo tem que voltar a comer churrasquinho, comer uma picanha e tomar uma cervejinha —afirmou. A declaração é parte do plano petista de intensificar as críticas ao avanço da fome no Brasil afora, problema que se   acentuou sobretudo na pandemia.

O PT lançou   mão de diferentes expedientes para tal. Nos últimos dias, passou a veicular uma peça com estética e recursos semelhantes a um vídeo famoso, idealizado pelo marqueteiro João Santana — que hoje trabalha para Ciro Gomes (PDT) —, lançado pelo próprio PT em 2014. O material de oito anos atrás mostrava pratos de comida sumindo, para atacar propostas da então adversária Marina Silva, citando um suposto reflexo na vida cotidiana do projeto de garantir independência do Banco Central. A temática deve se manter em alta na propaganda eleitoral na televisão. Até agora, as campanhas só podiam divulgar seus materiais por meio da internet e, desde ontem, em inserções na TV. Líderes nas pesquisas, Bolsonaro e Lula pretendem levar ao ar a defesa de seus legados e comparações entre gestões. Ao longo dos 2 minutos e 38 segundos a que terá direito, o presidente vai apostar nos impactos do Auxílio Brasil, da queda no preço dos combustíveis e, no extremo oposto, dos escândalos de corrupção dos governos petistas. Lula, que dispõe do maior tempo (3 minutos e 39 segundos), vai explorar dificuldades econômicas da população para dizer que em seu tempo o brasileiro vivia melhor, com mais acesso a emprego e renda.

Diferentes estratégias

Terceiro colocado, Ciro Gomes vai focar em propostas voltadas à população mais necessitada, como o programa de renda mínima no valor de R$ 1 mil por domicílio e o refinanciamento para limpar o nome de endividados. A estratégia para aproximar o pedetista do eleitor é fazer um programa com uma linguagem simples e didática. Ele terá só 52 segundos por programa. Simone Tebet (MDB) vai apresentar sua trajetória da senadora, reforçando sua biografia. Tebet ainda é desconhecida de grande parte dos brasileiros e terá 2 minutos e 20 segundos para tentar reverter esse quadro. O plano é intensificar aspectos femininos e um lado humano da candidata, ressaltando pontos que a diferenciem dos adversários.