Título: Quando a revelação incomoda
Autor: Milton Temer*
Fonte: Jornal do Brasil, 06/12/2005, Outras Opiniões, p. A13
Vamos nos acertar nos paradigmas. Se vige a isonomia, o que vale para Chico tem que valer para Francisco. Ou então nada tem valor. O nariz de cera vem a propósito da forma como diretores do Banco Central reagiram à divulgação do índice de queda do PIB, apurado pelo IBGE. Pois não operaram de forma idêntica quando a mesma instituição oficial, dois dias antes, tornou públicos os números que apontavam para uma redução centesimal da miséria brasileira. Ou seja; valem os dados quando servem para acobertar os privilégios ampliados a banqueiros e exportadores, mas não valem quando indicam, objetivamente, que o ganho pornográfico desses segmentos específicos é consolidado no contraponto da estagnação da economia produtiva do país.
Diante da indignação do corpo técnico do IBGE, o comissário dos banqueiros junto ao governo Lula, o inimputável Henrique Meirelles ainda tentou consertar a gafe. Desmentiu a notícia. O que havia vazado para o noticiário sobre a reunião do Copom não correspondia ao que ele, presente à fatídica reunião, tivesse ouvido dos ímpares presentes. Pura formalidade diplomática.
Não teria vazado tal informação, não houvesse o muxoxo prevalecido na última reunião do Copom. E por uma questão preliminar: quem é o Copom? Quem compõe esta misteriosa entidade que determina os destinos da economia nacional? Trata-se, o que é absurdo, de um coletivo público-privado, com mais poder sobre as contas do Tesouro do que qualquer outra instância oficial de governo. Reúne diretores do Banco Central a consultores oriundos do sistema financeiro privado, cuja identificação individual nada significa para o comum dos mortais. Isso mesmo; executivos que representam os interesses dos grandes banqueiros e que, obviamente, só discutem a partir dos interesses do sistema financeiro privado. Daí, a implacável submissão às metas de inflação, pela qual se estabelece a espantosa política de juros estratosféricos, com os quais os ditos banqueiros vêem seus lucros pornograficamente ampliados, por conta dos títulos de dívida do governo que o segmento controla.
Foi, aliás, um dos representantes do setor privado que, publicamente, e após as declarações ''corretivas'' de Meirelles, revelou-lhe o tamanho do nariz de pinóquio.
Este episódio coloca em questão o caráter da verdadeira reforma política que o país necessita. Pois deixa claro a falência institucional que ameaça a chamada democracia representativa. Mostra o que há de falacioso naquilo que, governo e oposição de direita, chamam de reforma política, mas limitada a simples remendo eleitoral.
O processo eleitoral é fundamental, mas não é a única instância a ser considerada em tal reforma. Muito mais importante é discutir a essência do Estado e suas ditas instituições republicanas.
Não é preciso recordar Rousseau, lá no seu distante Contrato Social, ironizando os ingleses vaidosos por seu parlamento escolhido em eleição. Já prenunciava que o poder do cidadão em tal processo só correspondia à fração de tempo mínimo em que depositava o voto na urna. A partir dali, só lhe restava esperar o próximo pleito, quatro anos depois.
Hoje, mais ainda, as razões para ironizar estão mantidas. Porque nem no momento decisivo - não só pela propaganda enganosa, como pela impossibilidade de revogar o mandato - pode-se afirmar que o voto cidadão se torna ato político perfeito. O que obriga - até por conta do avanço tecnológico, ora permitindo acesso instantâneo ao conhecimento dos fatos - uma mudança de paradigmas. Reforma política só merece tal qualificação se considerar, e de forma profunda, a introdução permanente do controle social sobre o aparelho do Estado e sobre os meios de produção dele dependentes, ou dele concessionários.
E aí, não há limites. A arbitragem sobre os direitos e deveres constitucionais não pode estar submetida às togas do Supremo Tribunal Federal em termos absolutos. E sequer a escolha dos ministros desta Corte máxima pode continuar se realizando nos termos políticos, e subordinados à indicação de nomes exclusivamente pelo Executivo. Congresso e Executivo não podem se ver limitados apenas ao controle durante os períodos eleitorais. O poder de revogar mandatos - não apenas por ilegalidades ou crimes que representantes cometam, mas até pelo não cumprimento do compromisso eleitoral com o cidadão representado.
*Milton Temer escreve às terças-feiras no JB.