O Globo, n. 32531, 31/08/2022. Mundo, p. 22

O reformador fracassado

Vivian Oswald


Mikhail Sergeievich Gorbachev revelou ao planeta em 25 de dezembro de 1991 uma das notícias mais impactantes do século XX. A internet engatinhava e as mídias sociais não sonhavam existir. Em cadeia nacional de TV, em um salão do Kremlin, ele anunciou a sua renúncia e o fim da União Soviética. Entre as paredes da fortaleza do poder político russo, acompanhado de um punhado de assessores, o oitavo e último líder soviético destacava como conquistas suas o fim da Guerra Fria e da corrida armamentista, a abertura para o mundo e o abandono da interferência em questões internas dos outros países. Lá fora, o pavilhão da URSS dava lugar à bandeira da Federação Russa. O país estaria vivendo dali em diante, dizia Gorbachev, um mundo novo, marcado por eleições livres, um sistema multipartidário, liberdade de imprensa e de credo e prioridade para os direitos humanos:

— Fomos recompensados com confiança, solidariedade e respeito. Pagam os com a nossa História e nossas experiências trágicas por essas conquistas democráticas, e elas não devem ser abandonadas, em nenhuma circunstância, sob qualquer pretexto — afirmou.

‘A vida só piorou’

Naquele dia, como milhões de soviéticos, a bibliotecária Galina Sergeevna, mãe de duas meninas, assistia perplexa ao pronunciamento do presidente. Hoje, aposentada, conta ter sido tomada por medo e preocupação. Era o fim do país em que havia crescido, uma decisão equivocada, em sua avaliação, comum custo enorme para a população. Ela não se refere a Gorbachev como “traidor ”, como tantos de seus compatriotas, mas diz que “foi fraco, não soube governar”.

— Foi responsável por tudo de bom e de ruim. De bom, havia apenas as expectativas. A criminalidade cresceu, as prateleiras esvaziaram-se, as relações entre as etnias soviéticas se deterioraram e as ex-repúblicas deixaram a URSS. Não me lembro de nada bom. Ele prometeu muito. A vida só piorou — disse, refletindo o que pensam 46% dos russos que, segundo pesquisas, lamentam a dissolução da URSS.

Gorbachev chegou ao poder quando nenhum dos líderes soviéticos parecia durar muito. Antes que fosse apontado secretário-geral do Partido Comunista, em 1985, o país perdera três, em apenas dois ano semeio. Ele brigou por reformas, mas não conseguiu controlar as forças que libertou com o novo, depois de 74 anos de regime soviético. Desagradou à linha-dura do partido e enfrentou uma tentativa de golpe três meses antes de renunciar.

Desde a renúncia, Gorbachev dedicou avida a defender o seu legado. Em novembro de 2018, amparado por dois auxiliares, ele participou da estreia, na Rússia, de mais um documentário sobre a sua vida: “Meeting Gorbachev”, dos alemães Werner Herzog e Andre Singer. Além das reformas que conduziu na década de 1980, o filme trata do acordo de desarmamento que firmou em 1987 com os americanos para pôr fim à guerra não declarada entre o seu país e os EUA por quase meio século.

Medo da guerra nuclear

Derradeiro protagonista de um período que assombrou a geopolítica internacional, Gorbachev reunia ali as forças que lhe restavam para lutar pelo    seu reconhecimento como personagem essencial no panteão da História mundial. O posto estaria ameaçado desde outubro de 2018, quando Donald Trump anunciou a saída dos EUA do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário, que levou à retirada de mísseis das duas potências estacionados na Europa. O documento assinado por ele e o americano Ronald Reagan era a garantia de que as duas forças antagônicas viravam uma página importante.

Não que Gorbachev tenha conduzido o processo sozinho, mas há consenso entre especialistas de que o entendimento jamais teria saído sem ele. Vladimir Putin acabou anunciando também a retirada da Rússia do acordo. Gorbachev perdeu o sossego. Nos últimos anos de vida, publicou dezenas de artigos alertando para a destruição dessa herança. Em fevereiro de 2019, no jornal russo Vedomosti, escreveu que “hoje, tudo o que foi alcançado nos anos depois que pusemos fim à Guerra Fria corre grande perigo ”. No ano passado, pediu que Putin e Joe Biden conversas sem para “evitar a guerra nuclear ”.

Reverenciado no Ocidente como o homem que conduziu a URSS ao diálogo coma outra superpotência da época, Gorbachev é desprezado por boa parte dos seus por ter estado à frente do desmanche da União Soviética. Uma pesquisa do Centro Iuri Levada, de 2019, mostrou que 26% dos russos têm vergonha de suas reformas. Apenas 21% reprovam a mão de ferro de Josef Stalin. A Rússia continua sendo a maior nação nos atlas escolares, mas, com o fim do império soviético, ficou 20% menor.

O nome de Gorbachev quase nunca é mencionado pelas autoridades russas. Quando é, geralmente está associado a um período que todos querem esquecer: de caos, nas palavras de Putin, para quem o fim da URSS “foi a maior catástrofe geopolítica do século”.

Historiadores admitem que é cedo para julgá-lo. É verdade que foi o homem que acenou com a “perestroika”(reestruturação) e a “glasnost ”
(transparência), duas palavras absorvidas pelo resto do mundo. Mas o fim da utopia socialista não foi o que o cidadão comum imaginou. O que ficou na memória foi a derrocada do império, com um grau de humilhação inaceitável para o país que ainda vive as glórias da primeira nação a mandar o homem ao cosmo.

Filho de camponeses

Nascido em Privolnoye, no Cáucaso, o último líder soviético ficou conhecido pela origem humilde. Era filho de camponeses de uma fazenda coletiva. Seus erros de gramática são lembrados até hoje. O mais conhecido virou música que faz piada com a forma como conjugava o verbo “dar”. Algo como dizer “eu fazo”, no lugar de “eu faço”.

Depois de renunciar, Gorbachev aproveitou a popularidade internacional para levantar recursos para causas variadas como a fundação que criou em homenagem à mulher, Raisa, que morreu de câncer em 1999. Causou polêmica ao aceitar posar em um anúncio da marca de luxo francesa Louis Vuitton. Tentou voltar ao Kremlin, mas sua candidatura à Presidência em 2007 não teve mais de 0,5% dos votos. Foi sócio do jornal Novaya Gazeta, onde trabalhava a jornalista Anna Politkovskaya, morta em 2006, um crime jamais solucionado.

‘O país mais livre’

Para Ruth Deyermond, professora do King’s College de Londres, se Gorbachev não tivesse existido, talvez a História da URSS fosse outra. Mas o país precisava de reformas econômicas que certamente implicariam reformas políticas. E o período em que ele esteve no poder, segundo ela, mostrou que, quando o fio dessas reformas fosse puxado, o tecido soviético rapidamente começaria a se desfazer.

— Não acho que o que aconteceu sob Gorbachev, ou a maneira como se deu, era inevitável, mas algum tipo de mudança radical muito provavelmente teria acontecido.

A favor dele conta o fato de que o esfacelamento da URSS se deu sem tiros. Para o professor Archie Brown, de Oxford, um dos maiores especialistas em Gorbachev do mundo, longe de ter sido um fracasso, a perestroika foram os seis anos que mudaram o mundo para melhor. Gorbachev, segundo Brown, sacrificou a sua autoridade infinita sob as tradicionais regras do jogo soviético.

— Ele rompeu as regras para tentar criar um sistema e uma sociedade melhores do que os que havia herdado. Embora as falhas da democracia pós-soviética sejam evidentes, elas ocorreram nos anos em que Gorbachev já não tinha poder. O que me parece incontroverso é que o país que Gorbachev legou para seus sucessores foi o mais livre de toda a História russa —salienta o especialista.

‘Desculpe’

Não faltam interpretações sobre o papel de Gorbachev. Um episódio em 2019 ilustra parte das contradições que o cercam. Um quadro com a sua assinatura foi vendido por 12 milhões de rublos (R$ 1,024 milhão) para um colecionador anônimo em um leilão da 12Stuly. A obra é resultado de um encontro dele com o estudante V. Ivanov na Universidade de Moscou, em 2009. O artista pediu-lhe um autógrafo e que fizesse um desenho na mesma folha de papel. Gorbachev assinou e se recusou a desenhar: “Faça você mesmo, você tem criatividade suficiente .” Ivanov preencheu o espaço com apalavra “Prostite” (desculpe ). Dizem que essa é a palavra que muitos gostariam de ter escutado de Gorbachev, que morreu ontem, aos 91 anos, no Hospital Clínico Central de Moscou ,“após uma doença grave e prolongada ”.