Valor Econômico, v.
20, n. 4978, 09/04/2020. Especial, p. A6
Além da recessão, país
deverá superar as desigualdades
Glauce Cavalcanti
Lucila Soares
Rennan Setti
O Brasil que sairá da crise do coronavírus terá que vencer uma recessão
profunda e duradoura sob cenário externo adverso e missão fiscal redobrada.
Será preciso fugir à tentação de transformar em permanentes os gastos
emergenciais que a pandemia exige, mas superando as deficiências em matéria de
saúde, saneamento e inclusão que ela escancara. O desafio extrapola,
porém, os limites da economia, exigindo transformações no próprio tecido
social: empresas mais solidárias; uma classe política mais madura e aberta ao
diálogo; um país menos desigual.
Essa é a rota traçada
no seminário “E agora, Brasil?”, que reuniu esta semana em debate virtual
o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, a economista Zeina Latif e Luiza
Helena Trajano, presidente do Conselho de Administração do Magazine Luiza. O evento
foi realizado pelos jornais “O Globo” e Valor, com patrocínio do Sistema
Comércio através da CNC, do Sesc, do Senac e de suas federações.
Segundo Zeina, as
discussões sobre o futuro partem de passos em falso no passado. A crise
ressalta mazelas de um país desigual, com saneamento escasso e informalidade
que abarca 40% dos trabalhadores, dificultando a implementação de medidas de
socorro. O próprio Mansueto admite que levar o auxílio emergencial de R$ 600 à
população será “um esforço de guerra”.
Para piorar, diz
Zeina, o Brasil repetiu e potencializou os erros de seus pares ocidentais na
reação à pandemia. Ignorou alertas externos e internos e levou semanas para
impor isolamento. “O Ocidente inteiro errou, tirou poucas lições do que
acontecia no Oriente. Mas o Brasil errou mais, elevando o custo econômico
e dificultando a definição de estratégias”.
O custo econômico vai
ser alto, prevê ela. A parada foi brusca, terá consequências duradouras e será
agravada por um mundo mais fechado. Mas a consultora defende que, além de
medidas econômicas, mudanças sociais serão necessárias: “Não somos uma sociedade
coesa, que olha para o próximo. O sentimento de solidariedade tem
que perpassar nossas relações. Eliminar oportunismos é uma forma de
garantir uma transição melhor do isolamento, porque o movimento não será
tranquilo.”
Para Mansueto, uma
lição desta crise é a necessidade das reformas. Foi graças àquelas já feitas
que “não sairemos quebrados desta crise”, observa, citando a importância
dos juros baixos para financiar um déficit temporariamente maior do setor
público, podendo chegar a R$ 500 bilhões este ano.
Afinal, diz o
secretário, o envelhecimento rápido da população brasileira exigirá mais gastos
com o Sistema Único de Saúde (SUS), que já não corresponde às necessidades. Ele
defende mudanças constitucionais para tornar esse investimento mais eficiente,
como a retirada de percentuais mínimos de investimento, que, apesar de
meritórios, criam uma amarra.
Mas Mansueto concorda
com Zeina que a atual crise reforça a necessidade de maturidade política e
solidariedade social: “Além de reformas, vamos precisar de muito diálogo e
solidariedade. Depois da Segunda Guerra, os países se reconstruíram e montaram
uma rede de assistência social. Como não faremos no século XXI?”
Esta crise, de fato,
coloca as outras em perspectiva. “Ninguém pensou que um dia a gente viveria
algo parecido. A crise do governo Collor foi 20% do que vivemos hoje”, comenta
Luiza Trajano, que era diretora executiva do Magazine Luiza em 1990, quando o governo
confiscou as cadernetas de poupança dos brasileiros.
Se a turbulência atual
é inédita, também são novas as ferramentas para fazer frente a ela. O Magazine
Luiza adotou estratégias para aprofundar a digitalização do negócio. “Temos de
buscar saídas. Lógico que vamos voltar, mas não vamos ser os mesmos. Nada vai
ser o mesmo. Veja os nossos custos fixos hoje. Cortamos tudo o que dava para
cortar que não sejam pessoas, e vimos como vender o máximo pela internet”,
conta Luiza.
Mas Leandro Domingos
Teixeira Pinto, vice-presidente financeiro da Confederação Nacional do Comércio
(CNC), pondera que as empresas não conseguirão se reinventar sozinhas: “Se uma
empresa não tiver recursos, não adianta ter inovação. As empresas precisam
deles para atravessar este período de transição, e os governos federal e
estaduais precisam oferecer apoio concreto”.
Para a colunista do Globo Míriam Leitão, uma
das mediadoras do debate, a crise do coronavírus é aquela que vai passar o país
a limpo. “ Vamos pensar no que a gente fez e nos ajudou, como adotar a
democracia, acabar com a inflação e ter contas públicas transparentes. Mas
também no que não fizemos e vamos ter que fazer. Ao longo dos anos, o governo deixou muita gente para trás Valor Econômico, v. 20, n. 4978, 09/04/2020.
Especial, p. A6