O Globo, n. 32531, 31/08/2022. Mundo, p. 23

Gorbachev era ambíguo em relacão a Putin

Filipe Barini


A morte de Mikhail Gorbachev, último líder da União Soviética, aos 91 anos em Moscou, marca simbolicamente o fim de uma era, creem especialistas ouvidos pelo GLOBO: o político protagonizou o fim não apenas da URSS, mas também o desmantelamento do bloco socialista e de um mundo que, por quase meio século, esteve dividido entre Washington e Moscou.

— Ele era um dos últimos líderes ligados àquele mundo bipolar, e sua morte marca, entre aspas, que aquele mundo está indo embora, e um mundo novo, multipolar, está chegando — disse ao GLOBO Angelo Segrillo, professor de História da USP que viveu na URSS e é um dos principais pesquisadores sobre seu período final.
— É interessante que ele tenha morrido em meio à guerra com a Ucrânia, que marca uma nova fase da Rússia, com o país retomando um poder quase imperial.

'Trabalho destruído’

Gorbachev mantinha uma posição um tanto quanto ambígua em relação a Vladimir Putin, que foi sendo modificada ao longo dos mais de 20 anos do atual presidente no poder.

— Inicialmente, ele tinha uma visão positiva sobre Putin, especialmente no âmbito doméstico, e comungava de uma visão consolidada na Rússia de que Putin foi o responsável por uma reestruturação nacional, que foi o responsável pela estabilização política e econômica da Rússia, e Gorbachev via como positivo o protagonismo russo — afirmou ao GLOBO César Albuquerque, pesquisador da USP.

Gorbachev passou a criticar o governo depois dos primeiros sinais autoritários, como nas eleições de 2012 e nos protestos contra Putin. Em julho, um amigo do antigo chefe do Partido Comunista da URSS,o jornalista Alexei Venediktov, revelou à revista Forbes Russia que o antigo líder soviético considerava que Putin “destruiudo do o seu trabalho”,referindo-se às reformas, especialmente as democráticas.

Ao mesmo tempo, sinalizava um certo alinhamento às posições do Kremlin no campo externo e concordava com o retorno da Rússia ao status de grande potência e com um novo sistema multipolar, como defendido por Putin em 2007, em discurso na Conferência de Segurança de Munique.

— Ele acreditava na ideia de que tinha introduzido mudanças internas que permitiram o diálogo com o Ocidente, mas considerava que o Ocidente não atendeu a esses chamados, e colocou a Rússia em segundo plano no cenário internacional — afirmou Albuquerque.

— Ele esteve ao lado de Putin na invasão da Geórgia, em 2008, e na anexação da Crimeia, em 2014.

Gorbachev, porém, não chegou a se pronunciar sobre a invasão da Ucrânia. Com frequência, defendia que Moscou buscasse manter os laços com o Ocidente — embora apontasse certa “arrogância ocidental”, traduzida no não reconhecimento da Rússia como potência depois do fim da Guerra Fria.

— Há frases e expressões que ele gostava de repetir que são expressivas disso: “Somos europeus”, “Nosso lar europeu comum”. As negociações de desarmamento e o diálogo que ele estabeleceu com os EUA e a Europa nos anos finais da Guerra Fria foram uma tentativa de criar uma ordem global baseada nesses entendimentos — disse o professor de Relações Internacionais Maurício Santoro, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

— Mas esses esforços falharam, em grande medida pelo colapso político e econômico da URSS e do Pacto de Varsóvia. O que se seguiu a ele, nos anos 1990, foi um período de caos e humilhação da Rússia que está na raiz de tantos conflitos atuais, da desconfiança e ressentimentos de toda uma geração de líderes russos com o Ocidente.

Esses fracassos e a decadência que se seguiu ao fim da URSS foram diretamente associados a Gorbachev.

— Ele falhou nessa ambiciosa agenda de reformas, e deixou vários legados complexos, como disputas territoriais entre as ex-repúblicas da URSS, que até hoje persistem. E sua ideia de uma Rússia mais próxima do Ocidente tampouco vingou — diz Santoro.

Contudo, Segrillo aponta para a possibilidade de uma revisão futura da imagem de Gorbachev, um processo que ocorreu com outros líderes da História russa.

— Ele sempre foi visto como o homem que derrubou a URSS, mas acho que acabaram exagerando um pouco nesse status negativo. Ele não foi o responsável pelo que aconteceu depois, talvez pudessem ter construído um país melhor, e acho que, ao longo do tempo, as pessoas verão o que aquele período representou e avaliarão positivamente as reformas que fez — disse Segrillo. — Isso pode se acelerar se houver piora na situação da guerra, algo que poderia levar a um revisionismo das relações com o Ocidente.

‘Estadista único’

Putin lamentou a morte de Gorbachev, que será enterrado no cemitério de Novodevich, em Moscou, ao lado da mulher, Raisa, em data a ser definida pela família.

— O presidente Putin expressa suas profundas condolências pela morte — disse o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, por sua vez, disse que Gorbachev “mudou o curso da História”. “Foi um estadista único (...) que fez mais do que qualquer outro indivíduo para trazer um fim pacífico à Guerra Fria”, destacou em comunicado.

Já Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, afirmou que Gorbachev era um “líder digno de confiança” que “abriu o caminho para uma Europa livre”.