Título: O carrasco da velha senhora
Autor: AUGUSTO NUNES
Fonte: Jornal do Brasil, 08/12/2005, País, p. A2

Na segunda metade dos anos 50, já promovido a líder de massas, Jânio Quadros recusava-se a protagonizar comícios com platéias contadas em menos de cinco dígitos. "Para menos de dez mil, não falo", resumia o demagogo cheio de caprichos. "Cinco mil eu reúno só batendo uma lata no Viaduto do Chá". Ontem, como hoje, não é difícil juntar multidões de bom tamanho na movimentada passarela no centro paulistano. Nem é preciso ser um Jânio Quadros. Qualquer performista ligeiramente imaginoso, acampado em pontos de passagem de procissões humanas, costuma atrair a atenção da gente em trânsito. Um engolidor de fogo com pulmões poderosos, um desbocado arauto de beberagens que curam a impotência - a excentricidades do gênero nunca falta público. Às vezes, multidões. Mas sempre imóveis.

Brasileiros interrompem a mais urgente caminhada para engordar rodas imersas na contemplação de singularidades ao ar livre. Param com facilidade. E parados permanecem. É difícil fazê-los andar. E vai parecendo impossível induzi-los a marchar em defesa de uma causa. Os nativos da terra não gostam de mover-se sequer para reivindicações que atendam aos próprios interesses. Confrontados com causas que não os envolvem diretamente, limitam-se ao olhar indiferente.

Fosse outro o país, milhares de cidadãos estariam nas ruas para exigir a libertação imediata de Iolanda Figueiral, a brasileira de 79 anos aprisionada há cinco meses numa cadeia paulista. Acusada de tráfico de drogas (quando capturada com o filho em Campinas, tinha na bolsa menos de 17 gramas de crack), não pôde aguardar o julgamento em casa. Equiparado aos crimes hediondos, o delito a ela atribuído não permite esperar a sentença em liberdade provisória.

Nesta segunda-feira, o juiz José Guilherme Di Rienzo Marrey, incumbido de deliberar sobre o caso, condenou Iolanda a quatro anos de reclusão. "Não resta qualquer dúvida quanto à autoria e materialidade de um delito de tráfico de entorpecentes", argumentou o carrasco da velha senhora. Ela não viverá para cumprir a pena. Com o corpo reduzido a escombros que somam 40 quilos, devastada pelo câncer no intestino e no ovário, atormentada por dores, vigiando a bolsa de colostomia, restam-lhe, se tanto, oito meses de agonia. Ela queria morrer em casa, ao lado dos quatro filhos, 15 netos, 15 bisnetos e outros parentes. Mas o juiz é durão.

Depois de rechaçar todos os recursos impetrados pelo advogado Rodolpho Pettená Filho, Marrey não hesitou em condenar Iolanda à morte no cárcere. "Nunca vi um caso assim", espanta-se Pettená. Mas o magistrado não está só. Outros sete juízes, todos alocados em Campinas, estenderam a mão amiga ao colega Marrey.

Num documento redigido em tribunalês castiço, hasteiam a bandeira do corporativismo. Um trecho exemplar: "Lei há, e os juízes tão-somente interpretam-na e aplicam-na ao caso concreto". Há mais ênclises no texto que neurônios nas sete cabeças.

Dois promotores e dois juízes ouvidos pela coluna informam que Marrey poderia perfeitamente ter optado pelo caminho da misericórdia. Como Iolanda é doente terminal, bastaria invocar "razões excepcionais" para condená-la à prisão domiciliar. Os códigos não sofreriam arranhões. O últimos dias da prisioneira seriam menos dilacerantes.

Na segunda-feira, a única manifestação pública em favor da libertação de Iolanda, promovida diante do fórum de Campinas, reuniu a neta Cláudia Pereira e a nora Benedita Aparecida da Conceição. Proibidas pela polícia de abrir a faixa que haviam trazido de casa, Cláudia e Benedita providenciaram pedaços de papelão para transmitir o pedido de clemência. Nenhum jornal reproduziu o teor das inscrições, desenhadas com os garranchos dos humilhados e ofendidos.