Título: O poço
Autor: Ricardo Antunes
Fonte: Jornal do Brasil, 08/12/2005, Outras Opiniões, p. A11

Na última semana o país foi chacoalhado com a notícia do PIB do Lula. O governo dos bancos foi tão servil ao fiscalismo, tornou-se tão intrinsecamente defensor do superávit fiscal do FMI, interiorizou tanto o receituário que durante mais de vinte anos criticou, que acabou por desestruturar ainda mais a produção. O Brasil deve crescer bem menos que 3% nesse ano, resultado que o coloca na lanterna da América Latina, no grupo de risco dos que podem cair para a segunda divisão. E Palocci, então, soltou a máxima de que a redução do PIB é expressão de seu crescimento. Deve ser a dialética da malandragem...

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A República de Ribeirão Preto da era palocciana é de assustar. Fotografia em miniatura do ''modo petista do Campo Majoritário governar'', com seus Caixas 2, malas pretas e outras mutretas. É o que se depreende quando se vê os (ex)amigos de Palocci frente a frente: Buratti, Poletto, Dourado e Ademirson, numa infindável rede de telefonemas que se contam aos milhares. Os mortais ficam a perguntar: por que amigos tão fraternos e íntimos hoje se engalfinham como cão e gato na CPI? E que estranha capacidade de aglutinação tinha Palocci?

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José Dirceu foi, finalmente, cassado pela Câmara. Não pelo seu passado, nunca é demais repetir, mas pelo seu presente. Desde meados dos anos 90 que seu grupo - dos quais muitos são oriundos da luta de resistência contra a ditadura - depois de se estranhar com o grupo de Lula pela disputa da máquina do PT, com ele estabeleceu sólida e duradoura aliança. De um lado, o ''novo sindicalismo'' (hoje completamente envelhecido) que foi ao longo do tempo se despojando do pouco de política de classe de que era herdeiro. De outro lado, tínhamos um grupo politizado, ávido pelas chaves - ou trancas - do poder, dentro e fora do PT. Este, liderado por Dirceu. Aquele, sob a estrita e controlada condução de Lula.

A fusão foi condição para a vitória de ambos e o conseqüente alijamento e derrota da esquerda dentro do PT. Dirceu foi florentino e Lula utilizou-se de sua melhor marca, o pragmatismo. O casamento dos dois grupos e de seus principais líderes foi duradouro. Perto de completar - ou talvez de ultrapassar uma década - ele teve que ser desfeito. Dirceu, para salvar o governo Lula, foi para a guilhotina e levou consigo seus segredos. A pragmática do lulismo perdeu a máxima do instrumentalismo. Ambos nunca mais serão os mesmos. E Dirceu contabiliza um crédito valioso em seu favor. Que um dia poderá cobrar.

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A CPI da Terra - melhor seria chamá-la de CPI do latifúndio - aprovou relatório do deputado ruralista que considera ocupação de terra como ''crime hediondo'' e a ação dos trabalhadores sem-terra como praticantes de ''ato terrorista''. Não considera como crime hediondo os responsáveis pelo assassinato da irmã Dorothy e dos milhares de lutadores pela dignidade do trabalho e da vida humana que tombaram na luta contra o latifúndio nas últimas décadas. Não considera crime hediondo a morte por fome e inanição de meninos que labutam no campo com idade para brincar. Não considera crime hediondo a brutal concentração de terras (e de riquezas) que assusta qualquer cidadão que pensa em algumas formas de equidade social. Estamos chegando, mesmo, no fundo do Poço. Enquanto outros se deleitam no Paço.

*Ricardo Antunes, professor da Universidade de Campinas, escreve no JB às quintas-feiras, a cada 15 dias.