Título: Tragédia no 350
Autor: Julio Ludemir
Fonte: Jornal do Brasil, 08/12/2005, Outras Opiniões, p. A11

O único ponto do caminho em que os ônibus 174 e 350 se cruzam detém uma forte carga simbólica na geografia concreta e simbólica do Rio de Janeiro: a Central do Brasil. Pode ser no estressante horário do rush e talvez tenhamos que fazer um percurso tão errante como o dessas linhas, irritando os impacientes passageiros, sempre com pressa de chegar a algum lugar. Mas em alguma parada vamos perceber que as duas tragédias nos levam ao âmago do país.

Aparentemente, há uma brutal diferença entre os passageiros que partem da Rocinha e os que vêm do Irajá, mas, em sua longa viagem ao coração do Brasil, eles foram iguais na época em que todos acreditavam que podiam chegar lá desde que andassem no caminho certo e continuam a sê-lo hoje, quando não sabem se o seu ônibus será seqüestrado por um sobrevivente da Chacina da Candelária ou interceptado por crianças incendiárias.

A linha de montagem da miséria brasileira tem o avassalador poder de igualar os filhos deste solo, impondo favelas que crescem na mesma proporção que os escândalos de Brasília, policiais que vendem a sua autoridade em suaves prestações mensais e noites iluminadas pelo rastro apocalíptico das traçantes em paisagens tão distintas como Brás de Pina e São Conrado. Talvez a única diferença seja o fato de que os tiros trocados na Avenida Brasil não são ouvidos nos melhores endereços da cidade.

Nosso modelo de desenvolvimento é de alguma forma semelhante às linhas de ônibus, que andam, andam, andam, para terminar sempre no mesmo lugar. Talvez seja por isso que vemos as manchetes se sucedendo com a velocidade de um ônibus desgovernado, que não param quando acenamos para elas e tentamos entender o seu real significado. Como é que Sandro do Nascimento fugirá no 174, se ele sequer sabe dirigir? Por que imaginamos que Lorde irá tão longe, se o monstro da Fé até manco é?

Esse círculo vicioso tem o estranho poder de nos deixar impotentes, achando que a vida é assim mesmo. Temos no máximo um ataque de fúria, como naquela noite em que disputamos com policiais matadores o direito de executar Sandro do Nascimento de frente para as câmaras de TV. Na verdade, aquele espetáculo no horário nobre é uma pequena variação do nosso senso de justiça. Aceitamos com naturalidade a ação de grupos de extermínio, sejam eles oriundos das instituições de segurança ou da própria boca de fumo.

No fundo, tratamos o problema do tráfico de drogas como uma ''guerra particular'', se é que vale usar a imagem consagrada no documentário de João Moreira Salles, que surpreendeu o carioca ao transformar em ''notícia'' a violência que a cidade partida tentou conter em seus morros. Incomoda-nos muito mais a possibilidade de que os tiros de AK estejam deixando de ser ''som de preto, de favelado'', como diz a letra daquele funk da Tati Quebra-Barraco. Lá, vale tudo. De caveirão a corpos picados alimentando os jacarés.

O carioca médio debruçou-se sobre as fotos do 350 em chamas perguntando-se o que ele tinha a ver com isso, condenando o que o senso comum considerou um atentado terrorista. Mas na verdade esse é o nosso maior problema, ainda que seja mais do que justa a indignação com a tragédia de Brás do Pina. A cidade só acha que a violência é uma questão sua quando ela transborda os limites da favela e faz ''vítimas inocentes'', como foi o caso das cinco pessoas que morreram carbonizadas na noite de 30 de novembro. Até parece que os cadáveres produzidos em escala industrial dentro dos morros são naturalmente culpados e portanto sequer merecem a nossa compaixão.

O Rio de Janeiro, mestre em fazer mais do mesmo, aumentará o policiamento em determinadas áreas da cidade, construirá novos piscinões para manter o povo longe da Central do Brasil e obviamente pedirá mais verbas ao governo federal. Mas talvez a única mudança a ser colocada em prática seja a que foi feita em seguida à tragédia do 174. Ele faz o mesmo trajeto, conduz os mesmos passageiros e enfrenta os mesmos problemas. Mas agora ele é o ônibus 158.