Título: Além do Fato: Erros e riscos de gestão de empresas
Autor: Jorge Lobo
Fonte: Jornal do Brasil, 08/12/2005, Economia & Negócios, p. A20

Creio poder-se medir o nível de conscientização dos investidores do mercado de capitais de um país pelo número de demandas judiciais propostas contra administradores de sociedades comerciais e industriais concordatárias ou falidas. No Brasil, a derrocada e a liquidação de empresas médias e grandes raramente são seguidas de ações de responsabilidade civil contra os membros de conselhos de administração e de diretorias, que, por atos ou omissões, dolosos ou culposos, as conduziram à garra (aliás, confesso, durante doze anos no exercício das funções de curador de massas falidas na capital do Rio de Janeiro, jamais soube do ajuizamento de ações de ressarcimento de perdas e danos contra os causadores de concordatas preventivas mal sucedidas ou falências ruinosas ou fraudulentas).

O fenômeno da falta de iniciativa dos prejudicados ¿ acionistas ¿passivos¿ (os titulares de ações preferenciais sem direito de voto e os ordinaristas com reduzido número de ações) e credores por fornecimento de bens e de serviços e por financiamentos e empréstimos ¿ contra os autores e responsáveis por essas débâcles vem de longe e talvez se explique por causas sociológicas em um país em que impera a impunidade.

Romancistas brasileiros e portugueses, em magníficos livros e deliciosas crônicas de costumes, daqui e d¿além mar, descrevendo um tipo de indivíduo que fazia parte da elite empresarial, apesar do seu passado obscuro, como, entre nós, por exemplo, o Rubião, do romance Quincas Borba, que, diz Machado de Assis, ¿antes de professor, metera ombros a algumas empresas, que foram a pique¿, e, em Portugal, o papa Monforte, de Os Maias, cuja fortuna fora construída à custa ¿da pele do africano¿.

Essa figura, pintada de forma magistral por notáveis escritores, a todos impressionava e de todos merecia respeito ¿ não se sabe lá porque!

Talvez, por isso ¿ por esse inexplicável ¿respeito¿ ao ¿capitão de empresa¿ ¿, a recentíssima Lei nº 11.101, de 2005, que disciplina a recuperação judicial e extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, como, aliás, todas as demais leis de falência brasileiras que a antecederam, não trate, em nenhum dos seus duzentos e um artigos, da ação de responsabilidade civil dos gestores de sociedades limitadas e de sociedades anônimas e da recomposição patrimonial do ativo de empresas insolventes, seja as que se encontram em estado terminal, seja as que já sucumbiram, obrigando os interessados na indenização cabal e completa dos prejuízos que sofreram, a ter de recorrer ao Código Civil e à Lei de Sociedades Anônimas.

Na omissão da nova Lei de Recuperação e Falência (LRFE), é mister que os estudiosos se empenhem em examinar e debater inúmeras importantes questões inerentes e decorrentes desse intrincado assunto, como, por exemplo: quem é o titular da ação de responsabilidade civil? Quais os cuidados que devem ser adotados antes e durante a propositura da demanda? Qual é o bem tutelado? Quais os possíveis réus da ação: os sócios, os administradores, eventuais terceiros, que, voluntária ou culposamente, hajam causado a quebra, aumentado o passivo exigível injustificadamente, super estimado o ativo sem base legal ou econômica, em prejuízo da universalidade de credores? A absoluta carência de bens, a confissão tardia de falência ou a omissão de declarar-se insolvente tornam os sócios e administradores objetivamente responsáveis? etc, pois a relação poderia seguir indefinidamente.

Vejamos aqui, rapidamente, apenas a interessante e corriqueira hipótese, que tem merecido especial atenção da doutrina e da jurisprudência estrangeiras, que dá título a este artigo: ¿erros e riscos de gestão de empresas¿ com sede em países emergentes, como é o nosso caso. Charles Sanford Jr (CEO do Bankers¿ Trust N.Y.), no início dos anos noventa, elaborou a ¿teoria da administração de riscos¿ (Risk Management Theory), segundo a qual o risco, ínsito em todo e qualquer empreendimento bancário, financeiro, industrial e comercial, é sobremodo agravado nos mercados denominados emergentes, em virtude da globalização da economia, da ineficiência e tardia aplicação das leis antitruste, das escorchantes taxas de juros e spreads bancários, da importação de produtos de países com reduzidíssimos custos de mão-de-obra etc.

Pois bem. Apesar de vivermos num ¿mercado de risco agravado¿, na feliz expressão de Juan Malcolm Dobson, a nossa Lei de Sociedades Anônimas (LSA) apenas exige do administrador das companhias, inclusive das de capital aberto, quando do desempenho de suas funções e atribuições, que ele aja com o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus negócios, na esteira da noção do ¿bom pai de família¿.

Por conseguinte, se, de um lado, não há, na LRFE, regulamentação da matéria, e, se, de outro, na LSA, o padrão para apurar a responsabilidade dos gestores de bens alheios por atos danosos é o do ¿bom pai de família¿, fica difícil punir o administrador que haja causado prejuízos a sócios, empregados, credores e ao mercado em geral em decorrência do ajuizamento de um pedido de concordata mal sucedido com base no Decreto-Lei 7661, de 1945, ou da propositura de uma ação de recuperação judicial frustrada ou por força de falência.

Nos EUA, a doutrina e a jurisprudência procuram coibir abusos e erros de gestão através da ¿regra da administração responsável¿ (business judgement rule), segundo a qual ¿o empresário não tem responsabilidade civil por decisões honestas mas equivocadas, ainda que estas tenham sido evidentemente errôneas¿, porém deverá ser punido se houver, por exemplo, descumprido o dever de diligência (duty of care) e o dever de lealdade (duty of loyalty); se tiver agido com ¿fraude¿ ou ¿má-fé¿, ¿fraude construtiva¿, ¿má-fé e conseqüente indiferença¿, ¿má-fé e grave abuso de discricionariedade¿; se tiver incorrido em culpa grave (gross negligence), enfim se violar a ¿regra da administração responsável¿.

O caso WorldCom é um ótimo exemplo da tendência nos EUA de se buscar a punição dos responsáveis pela quebra de empresas prósperas: o processo de acionistas contra os administradores da WorldCom e bancos de investimentos terminou em acordo judicial, obrigando-se os administradores a transferir 20% do seu patrimônio pessoal e todos os valores em fundos de aposentadoria privada para a companhia a título de ressarcimento de prejuízos causados aos acionistas e ao mercado de capitais do país.

*Doutor e livre docente em Direito Comercial pela Uerj