Valor Econômico, v. 20, n. 4979, 11/04/2020. Brasil, p. A5

“Não estamos tão mal como os EUA porque temos o SUS”

Malu Delgado


Quando já tinha concluído sua graduação em medicina, Ana Maria Malik percebeu que “achava os pacientes ótimos, gostava deles”, mas como ”médico bom tinha de monte, o Brasil precisava era de arrumar o sistema onde os profissionais da saúde iam trabalhar”. Hoje professora da Fundação Getúlio Vargas, coordenadora do FGV-Saúde, Malik é uma profissional que não só auxiliou a formatar a concepção do Sistema Único de Saúde (SUS) na Constituição de 1988 como também entende sua lógica e complexidade como poucos. Em entrevista ao Valor, pelo WhatsApp, ela afirma que o Brasil só está melhor do que os Estados Unidos no combate à pandemia do coronavírus porque existe o SUS.

“O que eu gostaria de acreditar é que o cidadão brasileiro percebe que nós não estamos tão mal como os EUA porque temos o SUS. Porque tem alguém que, nacionalmente, nos Estados, nos municípios, de maneira coordenada, está contando os casos, identificando o que está acontecendo, procurando uma vacina, dando satisfações nacionalmente.” Segundo a professora, a população brasileira, na pandemia da covid-19, finalmente parece ter compreendido o valor do SUS e o conceito de universalização do sistema: “As pessoas estão percebendo que o setor da saúde está preocupado com cada um dos brasileiros, não está preocupado com quem tem plano de saúde, quem não tem plano”.

A disseminação do vírus mostra aos brasileiros, continua ela, “um pedaço em que todo mundo usa o SUS”. “Todo mundo usa o SUS na vigilância epidemiológica; todo mundo usa o SUS no que diz respeito à governança do sistema; todo mundo usa o SUS no que diz respeito à busca pelo desenvolvimento da vacina; todo mundo usa o SUS quando os laboratórios de saúde pública estão mobilizados para desenvolver testes para confirmação diagnóstica”.

Se a percepção sobre a universalidade e os benefícios do sistema tornam-se evidentes e pode ser vista como um lado positivo da crise, há outro aspecto, esse sombrio, que a doença deste século também escancara, diz Malik. “Fica para quem quiser ver, mas isso é o de sempre: o SUS é subfinanciado tendo em vista o que se espera que ele faça.”

Aos 65 anos -“sou do grupo de risco” -, a médica enfatiza que sua posição sobre o isolamento social é “a de todo mundo”. “Tem que ficar em casa. A gente está muito melhor do que poderia porque aqui em São Paulo começamos a ficar em casa relativamente cedo”, sentencia.

Com o foco na gestão da saúde e não na política, ela afirma que os conflitos entre o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, são um caso clássico do que a teoria aponta como problema de governança. “Precisa resolver quem manda no quê. Mas tenho que ser muito sincera: só sei o que sai na televisão e na imprensa”, desconversa.

Questionada se o ponto central é a autonomia do Ministério da Saúde que está em jogo, a especialista discorda. Segundo ela, comando é uma coisa, diretriz é outra. Nacionalmente, o ministério estabeleceu diretrizes, defende. “Não se trata de ter autonomia, e não falo só do ministro. No modelo do SUS, São Paulo não pode ir contra um decreto no Brasil, mas, se não houver decreto, o Estado pode fazer o que acha que deve fazer. E se o governador de São Paulo faz um decreto, os municípios não podem ir contra. Ninguém pode ir contra o que o nível acima decide. Mas se o nível acima não regulamenta, então o nível mais periférico pode tomar suas próprias decisões.”

Essa lógica não inviabiliza que as regiões do país e os Estados tomem medidas diferentes, exatamente porque a capacidade do sistema hospitalar é distinta, as curvas de contaminação não se dão da mesma maneira em todo o país. “As ações são locais, mas as diretrizes são nacionais porque o SUS é um sistema único de saúde. Tem alguém que está olhando, que está tentando mobilizar recursos, tem alguém que está falando que a saúde é mais importante, neste momento, do que a economia.” Em resumo, a professora argumenta que os gestores não estão à espera de comando. “As pessoas estão esperando diretrizes, o que é completamente diferente.”

Na opinião de Malik, “as diretrizes do ministério estão vindo” e ela elogia a equipe técnica que assessora Mandetta. “Aparentemente, o Ministério da Saúde está sendo assessorado por profissionais ótimos. A parte de diretrizes macro na área da saúde estão sendo muito bem apresentadas.” As entrevistas coletivas diárias do Ministério da Saúde, acrescenta, são transparentes e fundamentais para definir essa orientação nacional. Porém, nas entrelinhas, ela deixa claro o incômodo com a confusão gerada justamente pela postura do presidente Bolsonaro.

“Quanto menos clareza de informação você tiver, ou quanto menos você confia na informação que tem, maior a possibilidade de conflito e de desvio. Então enquanto a gente fica nesse vai ter e não vai ter, fecha, abre, quanto mais isso fica obscuro, maior o ambiente de conflito e maior o ambiente para você tomar as próprias decisões. Mas felizmente estamos numa democracia. Graças a Deus!”, enfatiza.

Outro desencontro que a deixa indignada é a polêmica sobre a hidroxicloroquina. “O pessoal estoca, sabe Deus por quê! Cloroquina tem indicação. Não é para sair tomando na louca, para ter em casa porque “vai que eu preciso”. Tem efeito colateral sério, indicação precisa.” A professora tem acompanhado todas as pesquisas e publicações sobre covid-19 nos principais journals científicos do mundo. “Ainda não há certezas. Não há evidências. Tem que tomar cuidado”, adverte.

Ana Maria Malik traça dois cenários pós-pandemia. Um otimista e outro não muito animador. Pessoalmente, diz que seus sentimentos oscilam, e que ora aposta em um, ora acredita em outro. No otimista, crê que a população brasileira passará a ter confiança no SUS e a ver o sistema com credibilidade, o que já estaria ocorrendo. Como exemplo, ela cita o surpreendente percentual de pessoas que aderiram à campanha de vacinação contra a influenza - um índice nunca atingido em campanhas anteriores. A sociedade brasileira, pós-pandemia, vai exigir informações cada vez mais transparentes e claras de seus gestores e governantes, afirma a especialista.

Já no cenário pessimista, “vão continuar com a política de redução do SUS”. E é aqui que ela faz uma reflexão sobre o paradoxo econômico: “Se você considera que a maior parte dos planos de saúde é corporativo, ou seja, tem plano quem é empregado, se houver menos gente empregada obviamente haverá menos gente com planos de saúde. Ou seja, o SUS precisará acolher mais gente”.