Correio Braziliense, n. 21876, 07/02/2023. Política, p. 2

Lula amplia polarização ao falar de atos golpistas

Ingrid Soares


O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou que os ataques golpistas de 8 de janeiro decorreram da “revolta dos ricos que perderam as eleições”. A declaração ocorreu, ontem, na cerimônia de posse do presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), Aloizio Mercadante, no Rio de Janeiro. 

“O que aconteceu no Palácio do Planalto, na Suprema Corte e no Congresso foi uma revolta dos ricos que perderam as eleições”, enfatizou. “Não podemos brincar, porque um dia o povo pobre pode se cansar de ser pobre e resolver fazer as coisas mudarem neste país. Eu ganhei as eleições exatamente para fazer as mudanças que não eram feitas. Se nós conseguirmos decepcionar esse povo, e o povo passar a desacreditar de nós, fico pensando o que será deste país.”

 Também conforme o chefe do Executivo, “este país não pode continuar sendo governado para uma pequena parcela da sociedade, mas para a grande maioria do povo brasileiro”.  

As declarações de Lula reforçam o clima do “nós contra eles” e destoam de outras falas do presidente, que pregam a pacificação do país.  

A advogada constitucionalista Vera Chemin — mestre em direito público administrativo pela Fundação Getulio Vargas (FGV) — afirmou que Lula “parece mais interessado em recrudescer a divisão de classes”, além de tentar angariar maior popularidade, especialmente junto às classes menos favorecidas.  

“Afirmar que o evento de 8 de janeiro foi uma revolta dos ricos que perderam as eleições é subestimar a inteligência do eleitorado, além de aumentar ainda mais os conflitos de natureza ideológica”, disse. “Acredito que tal assertiva não poderia ser exteriorizada, sob risco de acirrar ainda mais os ânimos, tendo em vista a atual conjuntura de grave polarização político-ideológica”, ressaltou. 

Rodrigo Prando, cientista político e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, observou que o início do mandato de Lula foi marcado por momentos conturbados e que os comentários servem como aceno a sua base eleitoral. Porém, analisou que o presidente deveria seguir com a agenda de governabilidade.

 “A gente começa um governo que ainda, de certa maneira, é pautado por um ex-presidente. Dá para entender esse sentimento do presidente Lula, mas não justifica”, frisou. “Na perspectiva de um político experiente, ele deveria descer do palanque e preocupar-se com uma agenda pró-ativa na busca da governabilidade e de questões que pudessem pacificar o país, inclusive como ele de fato disse.”

Na opinião de Prando, “essa forma de ele tratar as ações do dia 8 como ‘a elite que perdeu a eleição’ é uma hipersimplificação”. “Da perspectiva política, da pacificação, a fala do Lula contribui muito pouco. Ele está sendo contraditório com as suas ações e os seus discursos”, pontuou. 

Já o cientista político Cristiano Noronha, da Arko Advice, destacou que o discurso do petista foi uma tentativa de justificar uma preferência por políticas sociais em detrimento da política fiscal. 

“Quando fala isso, está querendo justificar a adoção de medidas sociais em detrimento de políticas fiscais, como se a política fiscal beneficiasse apenas os mais ricos. Ele tenta fazer esse tipo de separação, que não tem amparo nenhum na realidade”, avaliou. “Muitas pessoas de classe média, alta, pessoas com educação superior também votaram no PT”, acrescentou.

Pressões

Paulo Baía, cientista político e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), afirmou que, embora o presidente esteja na missão de pacificar o país e terminar com o clima de animosidade, tem enfrentando pressões.  

“O 8 de janeiro, sobretudo esse dia, é uma declaração de guerra contra o governo. Organizada, orquestrada, com centralidade de ordem, com distribuição de tarefas, com infiltrados no governo do Distrito Federal. Portanto, Lula não pode dar declaração diferente da que deu”, enfatizou. “Lula terá de ser contundente. Se não, ele não governa. Pedem de Lula, o tempo todo, paz e tranquilidade, e o tempo todo provocam.” 

Segundo ele, “basta ver as declarações dos bolsonaristas na posse no Senado e na Câmara. Quem tem de sinalizar pacificação são as ex-autoridades que deixaram o governo”. 

Ainda na posse de Mercadante, o petista comentou a respeito a falta de reajuste salarial de servidores públicos e do próprio salário mínimo. “A minha pergunta é: como a gente pode falar em estabilidade, previsibilidade, credibilidade, se a gente sequer cumpre o dever de reajustar o salário mínimo todo ano, não apenas de acordo com a inflação, mas dar um pouco do crescimento da economia, quando ela crescer, para repartir com o povo?”, questionou.

Escalada antidemocrática 

30 de outubro

Lula é eleito pela terceira vez para a presidência. Bolsonaro, derrotado na tentativa de recondução, fica em silêncio. Iniciam-se movimentações de bolsonaristas contra o resultado do pleito.

31 de outubro

Extremistas colocam caminhões e tratores para bloquear estradas em diversos pontos do país. Líderes de associações de transportadores autônomos reconhecem a vitória de Lula e negam relação com os atos antidemocráticos.

2 de novembro

O então presidente Jair Bolsonaro divulga vídeo nas redes sociais, em que pede a apoiadores que liberem as rodovias, mas segue sem reconhecer a derrota.

3 de novembro

Com a fala de Bolsonaro e a pressão da sociedade, a maioria dos bloqueios em rodovias é liberada. Sem ações enérgicas da Polícia Rodoviária Federal (PRF), bloqueios desfeitos voltam a ser montados em outros pontos. 

4 de novembro

Com a liberação da maior parte das estradas e rodovias, um grupo maior de bolsonaristas se organiza pelas redes sociais para montar verdadeiras estruturas em frente a quartéis em todo o país. O quartel-general (QG) do Exército, no Setor Militar Urbano, em Brasília, começa a se tornar o epicentro da mobilização golpista.

9 de novembro

Relatório das Forças Armadas não aponta divergências entre a fiscalização dos militares no processo de votação e os dados divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mas documento do Ministério da Defesa, sob o comando do general Paulo Sérgio Nogueira, alega não ter tido acesso a todas as informações e, de forma vaga, diz que, mesmo não encontrando indícios de fraudes, não poderia descartar sua existência.

19 de novembro

Candidato a vice de Bolsonaro, o general Braga Netto diz a apoiadores na porta do Palácio da Alvorada que eles “não perdessem a fé”, o que é interpretado nas redes bolsonaristas como um recado de que o golpe estaria sendo preparado. A mobilização nos acampamentos em frente aos quartéis se amplia.  

22 de novembro

O PL, partido de Bolsonaro, pede ao TSE a anulação de todos os votos de um tipo de urna, considerada “inconsistente” por uma auditoria encomendada pela legenda. Com a invalidação, solicitada apenas para o segundo turno, o resultado das eleições seria alterado, dando a vitória ao então chefe do Executivo. Sem provas, a coligação de Bolsonaro é multada em R$ 22,9 milhões pelo ministro Alexandre de Moraes, presidente da Corte.

23 de novembro

Após 23 dias de tumultos e agressões em estradas e rodovias, a PRF consegue desmobilizar todos os bloqueios golpistas nas estradas.

9 de dezembro

Bolsonaro fala pela primeira vez a apoiadores no cercadinho do Alvora e afirma que as coisas dariam certo “no momento oportuno”. A mensagem é interpretada pelos radicais como a antecipação de um golpe. 

12 de dezembro

Lula é diplomado pelo TSE. No mesmo dia, um grupo golpista tenta invadir a sede da Polícia Federal para resgatar um indígena bolsonarista preso. Fracassada a invasão, os vândalos iniciam uma depredação na área central de Brasília. O atentado termina com lojas vandalizadas e veículos incendiados, entre ônibus e carros. Mesmo com ação da Polícia Militar, nenhum terrorista é preso.

24 de dezembro 

Na véspera do Natal, é descoberto plano para explodir uma bomba colocada em um caminhão de combustível próximo ao aeroporto de Brasília. Os três autores do ataque terrorista frustrado são bolsonaristas e frequentavam o acampamento golpista no QG do Exército. 

30 de dezembro

Bolsonaro viaja para Orlando, nos Estados Unidos, onde permanece. 

 

1º de janeiro

A posse do novo chefe do Executivo ocorre sob forte esquema de segurança e uma grande participação de público. 

5 de janeiro

A capital federal recebe mais de 100 ônibus com terroristas, vindos de vários estados.

8 de janeiro

Golpistas marcham do QG do Exército para a Esplanada e, sem grande resistência, invadem e depredam o Palácio do Planalto, o Supremo Tribunal Federal e o Congresso. 

O então governador do DF, Ibaneis Rocha, anuncia a exoneração do secretário de Segurança Pública do DF, Anderson Torres (foto, D), que está em férias nos EUA. 

Lula decreta a intervenção federal na Segurança Pública do DF e nomeia Ricardo Cappelli como interventor. Os golpistas são expulsos da Esplanada. Parte deles se refugia no QG do Exército.

9 de janeiro

Com a ação do interventor e ordem do ministro Alexandre de Moraes, os extremistas que estão no QG são presos, e os acampamentos por todo o país, desarticulados.

12 de janeiro

Polícia Federal encontra na casa de Torres uma minuta de decreto golpista. 

2 de fevereiro

O senador Marcos do Val (Podemos-ES) afirma em uma live ter sido coagido por Bolsonaro a participar de uma trama golpista para impedir a posse de Lula. Depois muda a versão e diz que a ideia partiu do então deputado Daniel Silveira (PTB-RJ).