Título: É proibido morrer em Biritiba-Mirim
Autor: Israel Tabak e Josie Jerônimo
Fonte: Jornal do Brasil, 09/12/2005, País, p. A5

Prefeito avisa que moradores deverão cuidar da saúde ''para não falecer''

No período mais duro da ditadura militar, em 1973, O Bem Amado, a primeira novela em cores da TV brasileira, mostrava os costumes de Sucupira, uma cidadezinha que simbolizava os desmandos da política. A habilidade do autor, Dias Gomes, conseguia driblar as periódicas desconfianças dos quartéis, que temiam também estar sendo retratados na sátira que contava a história do prefeito Odorico Paraguassu e o seu grande projeto de inaugurar o cemitério municipal. Mais de 30 anos depois, em tempos democráticos, o tucano Roberto Pereira da Silva, prefeito de Biritiba- Mirim, um município de 29 mil habitantes que produz hortaliças, a 80 quilômetros de São Paulo, também recorre à sátira para expor, ao seu jeito, as mazelas que pontuam a ausência de planejamento nas grandes e pequenas cidades brasileiras. Se Odorico Paraguassu vivia o drama de não ter a quem enterrar - ninguém estava morrendo na cidade - Roberto Pereira da Silva enfrenta problema inverso: não há mais vagas no cemitério local e o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) proíbe a construção de mais um cemitério na cidade, quase toda considerada área de proteção ambiental. Provavelmente inspirado no personagem imortalizado por Paulo Gracindo, o prefeito tucano apelou paro o grotesco, tentando chamar atenção para o problema de Biritiba-Mirim, município que abastece de hortifrutigranjeiros a capital paulista: ele enviou à câmara local um projeto de lei que decreta no artigo primeiro: ''Fica proibido morrer em Biritiba-Mirim''. O parágrafo único também faz rir: ''Os infratores responderão pelos seus atos.'' Os demais artigos avisam que os habitantes da cidade deverão ''cuidar da saúde para não falecer'', enquanto não se constrói um novo cemitério. O ardil do prefeito funcionou, porque fez despertar do sono eterno a enferrujada burocracia: o Conama, que se fingia de morto em relação ao impasse, se apressou em informar que está analisando ''medidas de emergência'' para que a cidade possa enterrar os seus mortos. Para despertar o Conama da letargia, foi preciso um cutucão do prefeito: ''Como é que se faz uma lei sem conhecer as necessidades reais da cidade'', pergunta Paulo Pereira da Silva. O único cemitério de Biritiba Mirim é de 1910, e segundo Luiz Antônio da Cunha, procurador-geral do município, a situação é tão grave que os mortos já estão sendo enterrados nas alamedas: - Fizemos uma sátira, sim, e parece que está funcionando. O Conama proíbe a construção de cemitérios em áreas de mananciais, que abrangem 98% do município. Nosso objetivo é fazer com que o conselho seja mais flexível em casos como o nosso. Jussara Corrêa, da família proprietária de uma das duas funerárias da cidade, conta que hoje já se é obrigado a passar por cima dos túmulos. Além disso, famílias começam a levar seus mortos para o município vizinho de Mogi das Cruzes. Se hoje já é possível fazer sátira para expor um problema ligado à morte, há cerca de 30 anos, na mesma época em que o Bem Amado era levado ao ar, a ditadura militar proibia os jornais de noticiarem as mortes decorrentes de uma séria epidemia de meningite que assolava o Rio e São Paulo. A dimensão da epidemia teve como uma de suas origens a ausência da mídia, que poderia ter papel decisivo numa campanha preventiva. Enquanto a tragédia ocorria no Rio e São Paulo, na tela da TV, Odorico Paraguassu se esforçava para fazer funcionar a sua mais importante obra - o cemitério de Sucupira - mas não tinha sorte. Ninguém morria na cidade e até um pistoleiro que resolvera se esconder por lá - Zeca Diabo, encarnado pelo ator Lima Duarte - jurara nunca mais matar ninguém. Enquanto isso, desfilavam situações tragicômicas que nunca deixaram de povoar o dia-a-dia da política. Nem o episódio Watergate - em que as escutas telefônicas ganharam destaque - Dias Gomes deixou escapar: muito antes do surto de escutas ilegais que tomou conta dos costumes políticos brasileiros, o confessionário da igreja de Sucupira já havia sido grampeado para que fossem devassadas as confissões de seus desafortunados habitantes.