Título: Os direitos do homem e os vôos da Cia
Autor: Mauro Santayna
Fonte: Jornal do Brasil, 10/12/2005, País, p. A2
Hoje faz 57 anos que as Nações Unidas aprovaram a Declaração Universal dos Direitos do Homem. O documento foi redigido por pequeno grupo, do qual fazia parte o brasileiro Austregésilo de Athayde, inspirado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa e em textos mais antigos. Passados quase 60 anos, constatamos que em nenhum lugar do mundo tais direitos estão sendo respeitados e sua violação é escárnio contra os humanistas que, durante séculos, respeitaram cada ser humano como o grande milagre da Criação. Em nenhum outro país se discutiu tanto sobre os direitos do homem e do cidadão quanto nos Estados Unidos. E são os Estados Unidos que, em nossos dias, são vistos como os que mais violam tais direitos, e não só a pretexto de combater o terrorismo.
Um dos mais importantes documentos sobre o assunto é o elenco das resoluções tomadas pela assembléia legislativa do Estado de Kentucky e pelo parlamento da Virgínia, redigidas por Thomas Jefferson, as de Kentucky, e James Madison, as de Virgínia, que são a mais bem fundamentada doutrina sobre os direitos políticos dos Estados diante da União, entre eles os da ''nulificação'', ou seja, da revogação de qualquer decisão do governo federal que contrarie os interesses das unidades federadas. O documento ficou mais conhecido como the Kentucky statement, pelo fato de que fora provocado pela decisão do governo central de expulsar um estrangeiro, protegido pelas leis do Kentucky, e dele cidadão (nos Estados Unidos, há duas cidadanias complementares, a do Estado e a da União). O governo do Kentucky recusou-se a admitir a expulsão, que se fundava no ''Sedition Act'', precursor da atual legislação de Bush contra o terrorismo.
Vale a pena transcrever parte da Resolução VI, do Kentucky: a detenção - prevista pela Lei dos Estrangeiros, da União - de uma pessoa protegida pelas leis deste Estado, por recusar obedecer a uma simples ordem do presidente, para deixar os Estados Unidos, é contrária à Constituição, na qual uma emenda dispõe que ''ninguém poderá ser privado de sua liberdade sem o procedimento legal'', e outra emenda dispõe que ''em todas as investigações o acusado gozará do direito de ser julgado publicamente por um júri imparcial e de ser informado da natureza e da causa da acusação, de ser confrontado com as testemunhas de acusação, de fazer citar por todas as vias legais as testemunhas de defesa e de ter a assistência de um advogado''.
Ao assumir a Presidência, em 1801, Jefferson tratou de revogar o ''Sedition Act'' - que entre outras restrições limitava a liberdade de imprensa e contrariava a Primeira Emenda.
Sem respeito por ninguém Esta semana foi marcada por novas denúncias de que os Estados Unidos estão seqüestrando cidadãos europeus e estrangeiros, transportados em aviões da CIA - que violam o espaço aéreo dos países da União Européia - para terceiros países onde são mantidos prisioneiros e torturados. Essa denúncia foi tornada pública pela organização norte-americana Human Rights Watch, com sede em Nova Iorque. Entre esses países que se fizeram cúmplices dos Estados Unidos, montando prisões secretas em seu território, segundo publicou Le Monde em sua edição datada de ontem, se encontram o Egito, a Polônia e a Romênia. El Pais, de quinta-feira passada, divulga as declarações de um cidadão alemão, de origem libanesa, Khaled al Masri, de que teria sido seqüestrado na Macedônia, em 31 de dezembro de 2003, onde se encontrava em férias. Depois de vários dias em um hotel de Skopje, sob a guarda de macedônios, foi levado a outro lugar, onde o desnudaram e o torturaram de todas as formas conhecidas. Logo depois o meteram em um avião e o conduziram sucessivamente a Kabul e à Romênia, e, depois de cinco meses, deixaram-no em uma estrada deserta perto de Tirana. Foi assim que pôde regressar à Alemanha. Teve sorte: eles o poderiam ter matado, a fim de não deixar rastros. Khaled está processando o governo americano. O governo italiano está também em litígio com os americanos pelo fato de ter sido seqüestrado um suspeito de terrorismo por agentes da CIA em Milão e enviado secretamente ao Egito.
Esses são casos mais conhecidos, mas jornais americanos denunciam que seu governo ''terceiriza'' a tortura, enviando alguns prisioneiros a países que se dedicam ao dirty job dos interrogatórios. Segundo um ex-embaixador inglês em Tashkent, um desses países é o Uzbesquistão, conhecido pelo costume de torturar seus prisioneiros, fervendo partes de seus corpos.
É claro que são dezenas os torturados nos cárceres secretos espalhados pelo mundo, mas quatro casos puderam ser claramente identificados: os de Khaled al Masri, cidadão alemão; Ahmed Agiza e Mohamed Zari, egípcios que se encontravam legalmente na Suécia e foram raptados em Estocolmo e enviados pela CIA ao Egito; e Abu Omar, que também se encontrava legalmente na Itália e foi raptado em Milão, gerando uma crise diplomática com o maior aliado de Washington na Europa, o primeiro ministro Berlusconi.
O duro libelo de Harold Pinter
O dramaturgo inglês Harold Pinter, um dos mais importantes autores contemporâneos, não pôde viajar a Estocolmo, a fim de receber o Prêmio Nobel, que recebeu pelo conjunto de sua obra, por se encontrar seriamente enfermo. Mas seu discurso, ''Arte, Verdade e Política'', foi ouvido em gravação de imagem e som pelos presentes à cerimônia na capital da Suécia. ''Quantos seres humanos devem morrer para que possamos qualificar os responsáveis (Bush e Blair) como criminosos de guerra''? - perguntou o dramaturgo.
Pinter relata todos os atos de violência cometidos pelos dois países no último século, mas destaca os que se cometem hoje, a pretexto do Iraque. ''A linguagem da arte - diz Pinter - é alguma coisa muito ambígua, uma areia movediça, um trampolim, um charco coberto de gelo, que, em qualquer momento, pode ceder sob os pés do autor. Apesar de tudo, nunca se deve deixar de buscar a verdade. Essa busca é improrrogável, não se pode deixar para amanhã. Há que se acometê-la de pronto, sem demora, como imperativo ético essencial''. Entre esses imperativos éticos essenciais, Pinter se referiu ao engajamento dos intelectuais ao lado dos republicanos, na Guerra Civil Espanhola.
A dignidade do homem se joga, de tempos em tempos, em certas situações e em certos lugares. Nestes últimos cem anos jogou-se em Sedan e no Marne; em Estalingrado e em Auschwitz; em Hiroxima e El Salvador; no Vietnã e no Alabama, no Chile e em Angola. Agora é a vez do Golfo Pérsico e da Bacia do Cáspio. Mas a decisão não se encontra ali, e sim nos Estados Unidos, onde cresce a indignação contra Bush e Condoleeze Rice, e na Inglaterra, contra Blair. Na ação de homens como Pinter e como o juiz Bingham, porta-voz da alta corte britânica, que determinou que nenhuma evidência obtida sob tortura pode ser considerada por tribunais britânicos, não importa em que parte do mundo tenha havido a tortura, quem a tenha praticado, quem a tenha sofrido, e quem a tenha determinado.