Título: Os coronéis do asfalto
Autor: Daniela Dariano
Fonte: Jornal do Brasil, 16/11/2004, País, p. A-3

Eleitos para zelar pelos serviços prestados pelo Executivo, um número crescente de legisladores tem sobrevivido politicamente justo devido à má qualidade do atendimento público à população. Estudiosos da tendência que se espalha pelas grandes cidades brasileiras já chamam esses parlamentares, proprietários de centros sociais privados paralelos ao Estado, de ''coronéis do asfalto''. O termo é referência à política clientelista que tem deixado a zona rural e invadido as metrópoles, valendo-se da miséria crescente e do inchaço urbano nas últimas duas décadas.

Tão corriqueiro tem se tornado esse tipo de atuação que alguns desses políticos não hesitam em admitir as atividades extra-parlamentares. Defendem-se, dizendo-se filantropos. Há até os que encorajam a estratégia. É o caso do deputado estadual Albano Reis (PMDB-RJ), que sustenta - do próprio bolso, assegura - uma rede de nove centros sociais:

- Muitos (colegas de Casa) me procuraram e eu orientei: é muito bom eleitoralmente. Dá muito voto. Quer ganhar voto? Eu incentivo: abre um centro social - reconhece, orgulhoso do trabalho realizado para atender à população carente.

Doutor em ciência política pelo Iuperj, o professor da PUC-RJ Ricardo Ismael observa o fenômeno não só no Rio, mas em áreas urbanas de diversos Estados, onde se multiplicam as promessas de reabilitação, ambulância e até enterro gratuitos. Cada um desses parlamentares, explica o especialista, procura fixar uma imagem de prestador de serviço social e, no período eleitoral, transformar a ajuda em voto.

Boa ação à parte, o trabalho extraparlamentar se torna, então, o esteio político de deputados e vereadores que - mesmo sem admitir - sobrevivem à custa do mau funcionamento dos serviços públicos.

- O problema é que não se tem uma atuação no sentido de tentar melhorar os serviços da prefeitura. Esses parlamentares ocupam um vácuo. Verificam que existe uma deficiência do poder público, principalmente na área de saúde, e tentam se identificar com eleitorado desassistido, construindo dessa forma sua carreira política. Houve uma expansão muito grande de centros de reabilitação, atendimento de ambulância. Esse atendimento deveria ser feito pelo poder executivo - argumenta.

Ricardo Ismael lembra que o papel do parlamentar não é prestar serviços sociais à comunidade - função, isso sim, do Executivo. O legislador é eleito para, além de estabelecer leis, fiscalizar e tentar estabelecer fontes de financiamento para suprir áreas deficitárias do Estado, explica. O resto é clientelismo.

- Se a pessoa quer exercer seu papel numa câmara ou assembléia, deveria fiscalizar o Executivo e buscar formas inovadoras para corrigir as falhas. É muito ruim que um serviço público seja prestado por um político, porque deixa de ser público e passa a ser particular. Esse atendimento não é um favor, é direito do cidadão, por isso a rede de atendimento deve ser impessoal.

O fenômeno do comportamento político surge, segundo o especialista, por conta da incapacidade do Estado de suprir as necessidades da população.

- Alguns parlamentares, os coronéis do asfalto, se aproveitam para criar uma clientela cativa. No passado, existia o coronelismo no interior. Agora está em áreas urbanas, porque nas regiões metropolitanas, as carências são muito grandes. Essa explosão metropolitana no Brasil nos últimos 20 anos foi um convite para as práticas clientelistas - analisa.

Diante da miséria crescente, em vez de fazer o papel de crítico ao governo, ele ''deixa como está, porque é assim que se mantém na política'', explica:

- Enquanto houver carência, ele consegue ser eleito. Esse parlamentar não trabalha para melhorar as políticas públicas. Ao contrário, ele só existe por causa das deficiências dessas políticas.

O deputado federal Alexandre Cardoso (PSB-RJ) calcula que, dos 50 vereadores eleitos este ano no Rio, 32 (64%) têm algum vínculo com entidades assistencialistas. O parlamentar afirmou ainda que, quando a conta se estende para o Estado do Rio, o número sobe para 75%. O deputado estadual Carlos Minc (PT-RJ) reconhece que na Assembléia do Rio, ''dezenas'' entre os 70 parlamentares mantêm algum tipo de centro social. Alguns legisladores, para evitar constrangimentos, usam nomes de parentes para

- Quase todos têm seus centros, o que é expressamente proibido pela lei eleitoral, mas eles usam nomes de outras pessoas no período eleitoral - critica Minc.

A legislação eleitoral, acredita o cientista político Ricardo Ismael, tem avançado para coibir a compra de voto. O uso de centros sociais como fachada durante campanhas para ''adquirir'' eleitores, já é alvo de fiscalização, denúncias e punições, por crime eleitoral. Ainda são frágeis, no entanto, os critérios para diferenciar filantropia de clientelismo.

Outro ponto polêmico e pouco nítido é a forma de financiamento dos centros sociais de parlamentares. O cientista político do Iuperj Jairo Nicolau defende uma investigação mais aprofundada com relação aos recursos que mantêm esse atendimento. Se funcionarem como entidades filantrópicas, recebendo verba do SUS ou de outras fontes públicas, o caso de torna mais gravesAlguns recebem do SUS, como entidades filantrópicas. Isso é mais grave. Ricardo Ismael concorda:

- A forma como são mantidas essas redes de proteção social é uma coisa nebulosa. Pode ser verba de gabinete ou algum tipo de dinheiro sem registro legal. As fontes são duvidosas.