Valor Econômico, v. 20, n. 4979, 11/04/2020. Finanças, p. C4

Resgates em fundos de crédito somam R$ 25,8 bi

Ana Paula Ragazzi 


Todo o estresse do mercado de crédito privado em março foi traduzido por R$ 25,8 bilhões em resgates em fundos dedicados a esses papéis. Com esse resultado, o patrimônio líquido dessa indústria caiu 14%, para R$ 174 bilhões, de fevereiro para março. Os dados são da provedora de informações financeiras Quantum Finance e mostram que 97,5% dos saques foram em fundos que oferecem a possibilidade de resgate em até 22 dias úteis. Carteiras com prazo superior a esse ficaram mais estáveis.

As incertezas causadas pela crise do coronavírus levaram a fortes desvalorizações em todas as classes de ativos financeiros. No caso do crédito privado, a liquidez quase que diária de muitos fundos potencializou saques. A quantidade de gestores que precisava vender debêntures aumentou, num mercado com negociação no secundário ainda tímida. A falta de liquidez favoreceu o comprador, que pediu um forte desconto no preço dos títulos, o que levou as taxas dos papéis de empresas de melhor qualidade de crédito (“high grade”) a taxas semelhantes às daquelas que não possuem um rating tão elevado (“high yield”).

O mercado ficou disfuncional, pois se empresas “AAA” ficaram com prêmio equivalente ao de uma empresa mais arriscada, isso interferiu em toda a precificação da pirâmide de crédito, encarecendo o acesso a financiamento para todas as empresas. E levou o Banco Central a buscar medidas para injetar liquidez nesse mercado e tentar normalizar as taxas.

Walter Maciel, principal executivo e sócio da gestora AZ Quest, afirma que o movimento nos fundos de crédito privado em março foi paradoxal. Segundo ele, a crise veio de maneira violenta, deixou as pessoas em pânico e houve busca por caixa - em todas as categorias de fundos mais líquidos.

“A questão é que, no caso do crédito privado, a liquidez estava apenas nos papéis de melhor qualidade. Foi aqui que se concentraram as vendas, o que levou esses papéis a sofrerem perdas na marcação a mercado dos fundos”, afirma Maciel. Ao mesmo tempo, os títulos de crédito estruturado, de operações desenhadas para empresas de porte menor, sem uma nota tão boa de crédito e que provavelmente vão sofrer muito mais na crise, estão em fundos com prazo de resgate mais elevado. “Como aqui não havia liquidez imediata, não saiu negócio e esse papel não oscilou, dando uma falsa impressão de segurança”, diz o sócio da AZ Quest.

Os saques foram potencializados, ele avalia, porque os cotistas tiveram perdas inesperadas. “Papéis com os melhores ratings caíram 12% ou 15%. Isso é um movimento muito forte para ações, imagine para uma debênture.”

Maciel reforça que, até aqui, “não houve crise de crédito alguma”, embora esse problema não possa ser descartado mais à frente.

“Teremos um comportamento muito heterogêneo, dependendo do tamanho da empresa e do setor em que ela estiver inserida. Mas é inegável que empresas maiores, mais fortes e capitalizadas vão sair melhor da crise, em detrimento daquelas de porte menor, que estavam tentando abrir espaço na concorrência”, avalia Maciel.

Em resumo, a crise de crédito não vai ser na mesma intensidade, nem em todos os setores. “Mas por mais paradoxal que seja, os fundos que mais apanharam até o momento são das empresas que vão sofrer menos”, afirma Maciel.

Nesse sentido, ele diz, o prazo de resgate mais longo evitou que os investidores tomassem uma decisão ruim. “A grande empresa ficou carimbada, mas esses papéis tendem a se recuperar depois desse nervosismo. A menos que se trabalhe com um cenário em que a economia inteira vai para o buraco, o que não acho razoável”, afirma Maciel. Nesse quadro, ele complementa, só tem uma maneira de perder dinheiro: resgatando.

Maciel aponta que as medidas anunciadas pelo BC foram bem-vindas pois não havia, num momento de pânico como esses, instrumentos para que o governo conseguissem dar funcionalidade ao mercado. Por essa razão, ele vê com bons olhos a proposta de emenda constitucional, que deverá ser avaliada esta semana no Senado, que permitirá ao BC, em momentos de crise comprar títulos públicos e de crédito privado no mercado. “Não adianta só liberar compulsório e baixar os juros. A política monetária não vai ter efeito se houver disfuncionalidade no mercado de crédito”, diz Maciel.

Ao comentar as medidas para dar liquidez a esse mercado, que também incluem uma linha do BC para que os bancos comprem debêntures no secundário, o ministro Paulo Guedes (Economia) observou que os fundos de crédito com liquidez em poucos dias e que compram papéis de prazo mais longo haviam sido barbeiragem do mercado, e pediu que a indústria repensasse o produto.

Ulisses Nehmi, sócio da gestora Sparta, diz que a crise coloca esses fundos em xeque para pensar se essas estruturas são adequadas. “Houve um movimento relevante de saques, que forçou os gestores a vender e alterou os spreads. Ou seja, a piora das taxas não ocorreu necessariamente pela piora da qualidade de crédito dos emissores”, afirma Nehmi. Quando o investidor sai num momento mais conturbado, ele diz, acaba deixando o fundo numa cota muito baixa. “Havia péssimo hábito dos investidores de trabalhar com reserva de emergência em fundos de crédito privado”, afirma.

Para Pierre Jadoul, gestor de crédito privado da ARX Investimentos, os fundos mais líquidos não vão deixar de existir. “Eles existem globalmente, as crises vêm e vão e eles estão aí”, afirma. “Mas haverá sim um aprendizado. Os gestores deverão, por exemplo, manter mais caixa ou focar papéis de prazos mais curtos”, afirma.

Mas a avaliação de Jadoul é de que os preços sempre se ajustam. “Agora existe a oportunidade no mercado de comprar papéis high grade a CDI + 4% ou 5%. É muito atrativo para quem entrar agora”, afirma o gestor da ARX. “Muitos gestores de ações estão olhando crédito nesse nível de preços. Inclusive porque se achar que a crise vai ser dura, é melhor ter dívida do que ação, pois o credor tem prioridades em relação ao acionista”, afirma. Jadoul diz que entre as emissoras dos papéis que estão nesses fundos, um ou outro nome que pode dar problema, mas não é iminente. “Talvez no segundo semestre haja algum movimento de renegociação, mas nada dramático”, afirma o executivo da ARX.