O Globo, n. 32477, 08/07/2022. Mundo, p. 22

Fim da linha para Boris



Pressionado por escândalos consecutivos, Boris Johnson anunciou ontem sua “dolorosa” renúncia à liderança do Partido Conservador britânico. Contrariando seus críticos, contudo, disse que continuará como premier interino até que o processo de escolha do seu substituto — que pode levar meses — chegue ao fim.

O golpe derradeiro contra o premier conservador, que concluiu no ano passado o divórcio do Reino Unido da União Europeia (UE), foi a renúncia de quase 60 integrantes do seu Gabinete em menos de 48 horas, movimento que ele tachou de “excêntrico”. Nunca antes um governante britânico viu um esvaziamento tão grande em tão pouco tempo, sinal da dimensão da perda de confiança em Boris.

— É claramente a vontade do Partido Conservador que haja um novo líder do partido e, portanto, um novo primeiro-ministro — disse Boris, um dos líderes britânicos mais controversos de que se tem memória, anunciando que as regras para a disputa por sua sucessão serão anunciadas na segunda-feira. — A razão pela qual lutei tanto nesses últimos dias para terminar meu mandato foi não apenas um desejo meu, mas porque achava que era meu trabalho, meu dever e minha obrigação continuar o que prometemos em 2019.

Apesar do empurrão para fora do cargo, ainda assim, conseguiu uma vitória derradeira: sua sobrevida enquanto o sucessor é escolhido. Vários aliados defendiam que Boris saísse de imediato e que outro nome fosse designado para comandar o Reino Unido interinamente. O premier, contudo, indicou substitutos para as baixas no Gabinete e conseguiu sobreviver por mais tempo.

— Quero dizer como estou triste de deixar o melhor emprego do mundo — disse Boris.

— Estou imensamente orgulhoso das conquistas deste governo ao finalizar o Brexit (...), devolver ao Parlamento deste país o poder para fazer suas próprias leis.

Adversários dentro e fora do seu próprio partido, no entanto, não esperaram se quer o discurso terminar para demonstrar sua insatisfação com a permanência interina do premier, demandando uma renúncia imediata. Keir Starmer, o líder trabalhista, disse que Boris não é “capacitado para governar e precisa ir agora”, ameaçando convocar um voto de desconfiança no Parlamento.

Partido vai decidir solução

Os conservadores, porém, provavelmente não apoiariam a medida, pois ela traria eleições antecipadas, e a oposição tem vantagem nas pesquisas. Apresentaram, contudo, suas próprias soluções. Afirmando que a permanência do premier é “imprudente e, talvez, insustentável”, o ex-premier conservador John Major (1990-1997) sinalizou duas alternativas em carta ao chefe da Comissão de 1922, o órgão do partido que define as regras eleitorais: que um novo líder seja eleito apenas pelos parlamentares, sem o voto dos filiados ao Partido Conservador, ou que o vice de Boris, Dominic Raab, governe interinamente. As regras serão determinadas pela comissão na semana que vem. Mas se não houver grandes alterações, a disputa pode ser demorada.

Pelos termos atuais, os 358 integrantes do partido no Parlamento enxugarão a vasta lista de candidatos para dois até o dia 21, quando começa o recesso de verão. Em seguida, os 180 mil filiados ao Partido Conservador votarão para eleger o novo líder, processo que pode chegar a outubro.

Em reunião de Gabinete após anunciar a renúncia, Boris prometeu não dar guinadas políticas ou alterar a política fiscal. O premier se recusa a demandar uma avaliação do impacto do Brexit, mas é cada vez mais difícil escondê-lo. A própria integridade territorial do Reino Unido está em xeque, com o movimento pela independência da Escócia voltando a esquentar. Mas o fator determinante para derrubar Boris foi ele mesmo.

Acobertando aliado

Desde o fim de 2021, o ex-prefeito londrino é confrontado com o escândalo conhecido como “partygate”. Enquanto os britânicos estavam submetidos a duras quarentenas para conter a Covid-19, festas foram realizadas na sede do governo. Ele próprio participou de ao menos duas e foi multado por sua presença.

O caso fez com que os conservadores convocassem um voto de desconfiança partidárioem6dejunho.Borisconseguiu sobreviver após negociações dantescas, mas saiu desgastado após perder o apoio de 41% dos correligionários. Durou 31 dias adicionais na liderança da legenda governista.

A gota d’água foi a renúncia do vice-líder da bancada do Partido Conservador, Chris Pincher, acusado de apalpar dois homens em uma festa. O governo insistiu por dias que Boris não tinha conhecimento sobre “acusações específicas” de má conduta do aliado, até voltar atrás e dizer que ele “tinha esquecido”. Daí em diante, acumularam-se ás renúncias de membros do governo, levando ao desfecho de ontem após forte pressão do partido.

— Nos últimos dias, tentei convencer meus colegas de que seria excêntrico mudar a liderança quando fizemos tanta coisa — afirmou o premier, antes de se referir às renúncias em massa.

— Como vimos em Westminster [a sede do Parlamento], o instinto de rebanho é poderoso. Quando o rebanho se move, ele se move. E, meus amigos, na política ninguém é indispensável.