O Globo, n. 32479, 10/07/2022. Economia, p. 19

O mal-estar da população

Cássia Almeida
Letycia Cardoso


O mal-estar provocado pelo empobrecimento é o mais alto no Brasil em dez anos. Numa análise sobre a miséria no país, o professor emérito do Instituto de Economia da UFRJ, João Saboia, concluiu que essa condição nunca esteve tão presente na realidade brasileira. Com outros pesquisadores do instituto, ele elaborou um índice para medira intensidade da miséria e do retrocesso na qualidade devida das famílias. Como agravamento da crise pela pandemia, os números mostram em 2021 a pior situação em toda a série do estudo, iniciada em 2012.

O índice de miséria vai de zero a 1. Quanto mais alto, piora situação. Nos cálculos dos pesquisadores, esse índice está hoje em 0,947, subindo quase 60% em relação a 2020, quando era de 0,591. O índice vai além do impacto da inflação e do desemprego sobre as famílias de renda mais baixa. Agrega dados sobre subemprego, renda domiciliar per capita dos 20% mais pobres do país, a desigualdade entre esse grupo e os 20% mais ricos e a inadimplência, que limita o acesso ao crédito para o consumo. O estudo traz um termômetro mais preciso dos efeitos das dificuldades na vida dos brasileiros mais pobres às vésperas das eleições.

— Houve uma disparada no segundo ano da pandemia. A situação piora muito do ponto de vista de bem-estar. Renda e desigualdade estão no pior momento, e outros indicadores só perdem para 2020, no auge da doença —diz Saboia.

O sociólogo Marcelo Medeiros, especialista em pobreza e desigualdade e professor visitante na Universidade Co lumb ia, em NovaYork, explica que aquedada rendados dois terços mais pobre sé muito visível e torna claro o aumento da desigualdade. Os mais ricos conseguem se proteger da inflação e têm reservas. O remédio para a inflação é concentrador de renda, diz Medeiros. O Banco Central aumentou a taxa básica (Selic) de 2% ao ano, em 2020, para os atuais 13,25%. Segundo Medeiros, só 1% da população declara rendimento de capital no Imposto de Renda:

— As pessoas estão mudando coisas importantes, fundamentais, como o padrão de comida. Houve perda de emprego de qualidade, com setor informal muito grande. Você vê desigualdade em tudo, inclusive no desemprego. Os ricos têm mais condições de se recuperar se perdem o emprego.

Segundo o estudo de Saboia, a renda dos 20% mais pobres caiu de R$ 244,50 em 2020 para R$ 187,50 per capita em 2021, perda de 23,3%, bem mais severa que a média geral de 7%. Frente a 2014, o melhor momento da renda dessas famílias, a redução no poder de compra foi de 27,3%. A distância social cresce. Os ganhos dos 20% mais ricos representam 21,1 vezes os dos 20% mais pobres. Em 2020, eram 16,9 vezes.

—A maioria das pessoas está vivendo sob uma pressão imensa —observa.

Dívida para fechar as contas

A inadimplência só não está pior que em 2020, auge da pandemia e do isolamento social. Pela pesquisa, 27,2% dos devedores têm pagamentos atrasados. Fábio Bentes, economista sênior da Confederação Nacional do Comércio (CNC), que mede o endividamento das famílias, cita três estatísticas que estão no seu pico. O número absoluto de devedores ,66 milhões, é o maior da série histórica da Serasa, que começou em 2016. O valor médio das dívidas chegou aR $4.107, também recorde. Há 3,42 dívidas por família no Brasil, média que só não é pior do que em 2020, quando eram quatro.

— Mas o tíquete médio de cada dívida aumentou e é o maior: R$ 1.212 —diz Bentes, que observa um crescimento da demanda por crédito, mesmo com juros subindo.

— Certamente são as famílias tentando fechar o orçamento. Esses recursos não estão indo para o consumo, porque o comércio está crescendo de forma preguiçosa.

O carpinteiro Neilson Garcia compra cada vez menos, inclusive comida. Se antes fazia uma boa compra no início do mês, com biscoitos e iogurtes para as filhas de 5 e 2 anos, agora se contenta com uma cesta básica.

— Não sobra para legumes nem frutas — lamenta.

Em 20 anos de profissão, ele nunca tinha enfrentado dificuldade para encontrar uma vaga de carteira assinada. Mas, depois de ser demitido no início de 2020, tudo mudou. Até conseguiu outro emprego formal, porém a empresa faliu oito meses depois. Desde janeiro, faz pequenos trabalhos como pintor e eletricista, mas não é sempre que surge algo. Aos fins de semana, ajuda a esposa que trabalha como cerimonialista. Conta nas estatísticas como ocupado, mas não tem segurança financeira:

— Sem nenhum bico, fico desesperado.

PEC agrava cenário

Daniel Duque, pesquisador da FGV, avalia que a crise atual que afeta os mais pobres ainda deve piorar em 2023. A proposta de emenda à Constituição (PEC) Eleitoral — aprovada no Senado e que deve ser votada na Câmara na semana que vem para aumentar benefícios sociais a três meses da eleição a um custo de R$ 41,2 bilhões — pode dar algum alívio temporário. Mas, na opinião do economista, vaia profundara miséria e a desigualdade a partir de janeiro, quando perderia o efeito:

— A medida fará a inflação demorara desacelerar, os juros subirem e o dólar se valorizar coma piorana situação fiscal. Isso vai ter um custo adicional nos próximos meses, com alimentos e combustíveis mais caros. A piora está contratada.

'Não se pode acomodar'

Filha de um porteiro e uma empregada doméstica, Driele Oliveira, de 31 anos, tenta mudar a história da família. Conseguiu concluir o curso superior, de Psicologia, em 2018, com o Fies. Na época, o que recebia com o trabalho em telemarketing só dava para ajudar em casa. A pós-graduação ficou para depois, assim como as parcelas do crédito estudantil, que a levaram à lista de inadimplentes.

De lá para cá, a situação ficou mais difícil. O pai perdeu o emprego, depois foi a vez de ela ser demitida. Driele decidiu pegar dinheiro emprestado com a avó para fazer um curso de massoterapia:

—Vou tentar esse mercado. Está ruim, mas a gente não pode se acomodar.

‘Na obra, ganho R$ 50 por dia’

Há seis meses desempregado, Gustavo Luiz Negrão da Silva, de 37anos, tem se virado com pequenos serviços em obras. Antes do último emprego formal, um contrato temporário de auxiliar de serviços gerais, passou três anos esperando que alguém o chamasse para qualquer trabalho.

A mulher dele, recepcionista, é o arrimo da família. A cada mês, o casal faz malabarismos para, com R$ 1.300, pagar aluguel, alimentação e o financiamento de uma geladeira em 36 vezes de R$ 256.

Com fundamental completo, Silva está no supletivo para melhorar o currículo:

— Numa obra, das 8h às 19h, ganho cerca de R$ 50 por dia. Mas nem sempre tem.

‘Duas semanas sem nada’

O cancelamento de voos na pandemia custou o emprego formal de Diego Ferreira da Silva, de 32 anos. Após 12 anos como auxiliar de rampa em aeroporto, encontra dificuldade para se recolocar no mercado.

— Pedem experiência para contratar, e não tenho outra. Enquanto isso, tenho feito limpezas de terreno e pinturas para levantar algum dinheiro. Mas estou há duas semanas sem arrumar nada — lamenta.

A mãe, de 78 anos, é quem paga as despesas da casa em que vivem apenas os dois com a aposentadoria de R$ 1.212. Boa parte vai para os remédios de uso contínuo, cujos preços têm subido.

‘Meu sobrinho pagou o ônibus’

Marisa Pacheco Amorim, de 53 anos, chegou com esperança numa feira de empregos no Rio nesta semana. Desempregada desde o fim de 2020, vive situação limite. Mora com o filho de 19 anos, Yuri, também desempregado, e os dois não sabem o que terão para comer na próxima semana. Por ironia, seu último emprego foi no caixa de um supermercado

Ela aplicou suas economias num investimento que prometia renda mensal. Bom demais para ser verdade. Perdeu tudo numa pirâmide financeira. Conta com amigos e familiares até para o ônibus.

— Meu sobrinho emprestou o RioCard para eu vir aqui. Eram R$ 17 de passagem.

‘Faculdade me ajudaria’

Rodolfo Lima do Nascimento, de 28 anos, estava com esperança de passar num concurso para a Polícia Civil do Rio, onde teria registro e estabilidade. Não conseguiu. Depois de se dedicar exclusivamente aos estudos para a vaga por três anos, sente agora a pressão para encontrar um emprego e ter uma renda.

Na casa que divide com a mãe, o irmão caçula e o pai, ninguém tem carteira assinada. O pai, pedreiro, sustenta todos na informalidade.

— Meu primeiro passo ao conseguir um emprego seria fazer faculdade. Acho que me ajudaria a ter uma vida melhor. Apesar de ser técnico em enfermagem, não consegui atuar na área.

‘Quase R$ 1 mil no mercado’

Para Samara Santos, de 22 anos, procurar emprego virou um trabalho. Todo dia, ela acorda e faz uma ronda na internet em busca de oportunidades para se candidatar. Às vezes, vai pessoalmente às empresas tentar uma chance.

Desempregada há oito meses, só acumula no currículo a experiência de um mês como auxiliar de produção, o que dificulta o recrutamento.

Ela quer ajudar na compra de alimentos em casa, o que mais pesa no orçamento da família de quatro pessoas em que só o pai tem renda certa, corroída pela inflação.

— Está bem complicado. A conta dá quase R$ 1 mil no mercado. O leite está caro, açúcar, feijão, café. Sem falar no gás de cozinha.