Título: O D'Artagnan do Caribe
Autor: Murilo Melo Filho
Fonte: Jornal do Brasil, 11/12/2005, País, p. A5

Éramos vários jornalistas brasileiros em Havana, naquela tórrida tarde de 6 de abril de 1960, há pouco mais de 45 anos: Villas-Bôas Corrêa, Carlos Castello Branco, Marcio Moreira Alves, Fernando Sabino, Helio Fernandes, Rubem Braga, Moniz Bandeira e eu, além de Jânio Quadros.

Na sala da presidência do Banco Nacional de Cuba, o calor era quase insuportável. Aprisionado naquela mesa, entre telefones que tocavam e barbudos que o cercavam, aquele homem parecia um pássaro na gaiola. O mundo inteiro já o conhecia como o Comandante Ernesto ''Che'' Guevara.

Por bravura no campo de batalha, haviam-lhe dado o título de Comandante. E por ternura o chamavam de Che, que, em seu idioma, significava ''Mio'': Meu Guevara.

Pendurado na parede - e era o único retrato existente em toda a sala - havia a foto de uma menina, com traços de índia. O Comandante fitava-a de vez em quando, parecendo até que os olhos daquela menina o levavam de volta a uma juventude que simplesmente não tivera, dedicada à causa da revolução.

Aquele argentino tinha a mansidão do médico a esconder-lhe a inquietude do revolucionário. Em muitos lugares por onde passara, não lhe haviam reconhecido os títulos da medicina. Como protesto, fora enfermeiro e estivador nas docas da Guatemala, enquanto preparava sua primeira revolução. Fracassou nela e quase ficara enterrado em alguma cova guatemalteca.

Olhou em derredor do Caribe e vislumbrou Fidel. Caminhou no seu rumo, porque nele havia uma revolução em marcha. E, de corpo e alma, juntou-se a três outros mosqueteiros: Raul de Castro, o Aramis, fechado, caladão, o mais jovem, 21 anos; Cienfuegos, o Athos, bem educado, suave e brincalhão; e Fidel, o Porthos, rude, impulsivo e violento. Guevara seria o D'Artagnan.

Quando começou a epopéia de Sierra Maestra, os quatro resolveram editar nas Antilhas os feitos registrados nos romances de capa e espada.

Cavaleiro andante da revolução, Che já estava então em Cuba, como antes já estivera na Guatemala, e como poderia depois estar na África, na Bolívia ou no Paraguai. Atraíam-no o cheiro da pólvora, o faro da guerrilha, o odor do enxofre.

- Como se sente neste banco lidando com dinheiro?

- Aprenderei a ser financista, como aprendi a ser guerrilheiro - respondeu.

Diante de nós não estava o banqueiro, mas o revolucionário: boina azul, a estrelinha num broche e as botinas bem engraxadas compunham seu uniforme de comandante.

Com apenas 32 anos de idade, lembrava Cantinflas, ou o Capitão Blood, misturado com Cid Campeador, o Profeta da Gávea, César Bórgia e Dom Quixote. As mãos são finas e polidas, como se pertencessem a uma moça. O bigode é bem aparado. E a barba rala desce-lhe pela face com os longos cabelos escorrendo-lhe pelo pescoço e ombro abaixo.

Se andasse incognitamente pela Avenida Rio Branco, e com seu aspecto incomum, seria alvo de ridículo e deboche. Mas para os homens como ele, que roçaram a fronteira da morte e tinham na carne o estigma deixado pelo contato permanente com o sangue e a tragédia, o ridículo simplesmente não existia.

Como ficaria ele sem aquela aparência? Como seriam suas feições verdadeiras? Ninguém em Cuba sabe, pois já o conheceram daquele jeito.

Dizem que os olhos não mudaram. Passaram por todos os tiroteios, conservando o mesmo olhar quando se fixavam no retrato da menina índia na parede. Mas são também a mesma vista azulada que se transmuda rapidamente diante da cólera com que vota pelo ''paredón'', no fuzilamento dos inimigos. Em ambas as ocasiões, porém, permanece-lhe no fundo da pupila aquela cor azul que lhe parece ser um homem rico a serviço da plebe.

É um revolucionário ''sexy'', casto até os 16 anos, apaixonado por uma prima. O histerismo feminino ronda-lhe os passos e beija-lhe as mãos e toca-lhe a farda e fita-lhe o rosto. Naquele exato momento em que falava conosco, teve de mudar três vezes de posição, porque, do lado de fora da janela de vidro, duas lindas cubanas enviavam-lhe, em desesperados gestos, as mais inequívocas demonstrações e desejos de amor.

À aura de heroísmo que o cerca soma-se o sentimentalismo da doença que o ameaça: ''Che'' é um asmático que de vinte em vinte minutos tem de retirar o vaporizador do bolso para bombear a ofegante respiração. Justamente naquele dia, para vir ao nosso encontro, (dos jornalistas brasileiros, alguns dos quais retornados de uma visita de três dias a Sierra Maestra), teve de levantar-se da cama onde uma crise de asma o prostara há uma semana.

- Como vai a saúde?

- Vai mal, mas não dá para morrer.

Quem dele se aproximasse o ouviria com atenção, mesmo condenando suas ações e suas teses, próprias de um marxista radical e convicto. Mas é indiscutível que leu e estudou muito, transformando-se naturalmente num teórico da revolução.

Diz-se que enquanto Fidel fala, e como fala! Guevara pensa, e como pensa!

Diz-se também que, estressados, sem dormirem direito, eles estavam brigando muito entre si e Fidel não os perdoava: Cienfuegos divergia demais e morreria logo depois num misterioso desastre de avião mergulhado no mar das Antilhas; Guevara discordava bastante e se exilaria a seguir na África e na Bolívia, onde seria trucidado.

Naquela tarde, ''Che'' estava tresnoitado e insone. Há meses, desde a entrada em Havana e a derrubada de Batista, não sabia o que fosse dormir tranqüilamente. Os barbitúricos encarregavam-se de mantê-lo de pé, embora as olheiras acusassem esgotamento e doença.

- Umas férias até que lhe fariam bem.

- Mas fariam mal à Revolução, que vale muito mais do que eu.

A tonalidade da voz não se alterava. Nem diante das nossas perguntas provocadoras, nem mesmo quando um jornalista americano, metediço na entrevista, pediu a Guevara declarações exclusivas para seu jornal:

- Não posso atendê-lo. Seu jornal é desonesto e deturparia o que eu dissesse.

Para ele, o povo cubano estava em núpcias e em lua-de-mel com a revolução. Até quando? O Comandante não sabia e era realista ao dizer:

- Os vários erros que cometemos se devem à imaturidade e despreparo com que muito de nós, mal saídos dos bancos escolares, tivemos de assumir responsabilidades de ministros de Estado. Estamos errando no varejo, mas acertando no atacado. Algum dia, que pode estar longe, talvez a fome e a miséria no mundo justifiquem os excessos da nossa revolução.

E ria muito quando ouvia dizer que era comunista:

- Considero-me apenas um homem de esquerda. Se os bens que confiscamos pertencessem aos russos, nós os confiscaríamos da mesma forma.

Como personalidade, ''Che'' impressionava mais do que Fidel. Conformava-se, porém, com sua posição secundária e nela aí ficaria até quando entendesse que Cuba necessitava de sua ajuda. Depois, daria outra olhadela pelas Antilhas, pela África e pela América do Sul, para ver onde estavam precisando de uma revolução e nela se engajaria. Considerava-se muito moço ainda e aquela mesa do Banco Nacional de Cuba já começava a prendê-lo demasiado.

Ninguém se surpreendesse, portanto, se esse D'Artagnan do Caribe saltasse por cima daquela mesa, de espada em punho, para desembarcar em outras praias, para enfrentar novas ditaduras e para lutar em outras ''sierras'' no cumprimento do seu destino de inexorável mosqueteiro.