Título: A soberania do povo
Autor: Eduardo M. Suplicy
Fonte: Jornal do Brasil, 11/12/2005, Outras Opiniões, p. A11

O parágrafo único do artigo 1º da Constituição diz que ''todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição''. Garante aos brasileiros o exercício da democracia e a soberania popular.

Nós, parlamentares, somos delegados do povo, perante o qual devemos prestar contas. Este princípio está em vários artigos da Constituição, como o 14, parágrafo 10; e os artigos 55 e 56 que qualificam como mandato a relação política que une os agentes públicos eleitos ao povo que os elegeu. Isso implica uma relação de confiança e na responsabilidade pelo desempenho de um cargo ou função pública.

É suposto que, caso a confiança desapareça, os poderes e responsabilidades confiados ao mandatário devem ser revogados, não de pleno direito, mas mediante uma manifestação inequívoca de vontade do poder popular que o elegeu.

Nossa Constituição não prevê, infelizmente, o exercício desse poder revocatório do povo soberano. Há ocasiões em que os que foram eleitos pelo povo, em qualquer nível, perdem muito da confiança que lhes foi dada. Isso nos leva a considerar a necessidade de se introduzir urgentemente, entre nós, o instituto da revogação popular de mandatos eletivos - ou recall, como o denominam os norte-americanos - de forma a fortalecer a soberania do povo. Na América Latina, a Constituição da Venezuela, de 1999, adotou o referendo revocatório em relação a todos os cargos providos por eleição popular (art. 72). Nos Estados Unidos, 14 estados introduziram o recall em suas Constituições. O primeiro deles foi a Califórnia, em 1911, e o último a Geórgia, em 1978.

No Brasil já existe alguma coisa nesse sentido, mas em âmbito estadual: no Rio Grande do Sul, Goiás e Santa Catarina, onde o referendo revogatório está presente nas constituições.

Sobre esse assunto podemos citar dois filósofos políticos: o racional Montesquieu e o humanista Rousseau. O primeiro reconhece que um povo livre deve ser governado por si mesmo, mas ao mesmo tempo afirma que o povo não é feito para decidir os negócios do Estado, e que a sua função política deve limitar-se à eleição de representantes, os únicos capazes de tomar o que ele chamou de ''resoluções ativas'', ou seja, decisões que demandam uma execução concreta (Do Espírito das Leis, livro II, capítulo 2; livro XI, capítulo 6).

Em sentido diametralmente oposto, Rousseau sustenta que, sendo a soberania do povo, ela é inalienável e indivisível por sua própria natureza, e não poderia jamais ser objeto de representação. Ou o povo a exerce efetivamente, ou deixa de ser soberano e fica reduzido à condição de súdito. Assim, concluiu ele, toda lei que o povo diretamente não referendou é nula, não pode ser reconhecida como lei. (Do Contrato Social, livro III, capítulo 15).

Essas duas posições extremadas acabaram por convergir, no mundo contemporâneo, para formar uma simbiose. Só se consideram legítimos, hoje, os sistemas constitucionais em que se estabelece a distinção funcional entre soberania e governo.

A nossa Constituição indica quatro grandes formas de manifestação da soberania popular: o sufrágio eleitoral, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular legislativa. Por isso, o senador Pedro Simon, eu e senadores de quase todos os partidos, instados pelo professor Fabio Konder Comparato, apresentamos projeto de lei inspirado na Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia, lançada em 15 de novembro de 2004 pela Ordem dos Advogados do Brasil, visando regulamentar os três últimos instrumentos da soberania popular, expressos no art. 14 do texto constitucional.

Também apresentamos duas propostas de emenda constitucional: a primeira que institui a possibilidade de se realizar a revogação do mandato dos membros do Poder Executivo ou do Legislativo, por meio de referendo, se não estiverem procedendo bem; a segunda, visando criar a possibilidade de se realizar referendo no caso da realização de obras de construção de barragens, ou de transposição de águas, em rios que banhem mais de um Estado. O mesmo acontece em relação a obras de grande porte em rios que sirvam de limites com outros países, que se estendam a território estrangeiro ou que dele provenham. Como não está previsto no rol das atribuições do Congresso Nacional, objeto dos artigos 48 e 49 do texto constitucional, este assunto significa que o poder Executivo é livre para tomar tais decisões e de pô-las em execução, submetendo-se apenas à apreciação posterior dos demais poderes da União.

Nosso intuito, ao apresentar os projetos ao Congresso, é corrigir esta situação de desequilíbrio institucional e aperfeiçoar as leis. Assim estamos cumprindo nossa função de zelar pelo equilíbrio federativo e representando o povo soberano perante o Poder Executivo. Para isso fomos eleitos pelo povo.