Valor Econômico, v. 20, n. 4980, 14/04/2020. Opinião, p. A12
Medidas para recuperação das empresas e das famílias
Eduardo Munhoz
A Lei de Falências dos EUA de 1898 inspirava-se na ideia de que, para a sociedade, interessa permitir ao homem honesto recuperar-se de suas dívidas, em vez de mantê-lo afogado em dívidas. Tocqueville, no século XIX, apontava que um traço marcante da sociedade americana é o de não considerar a falência motivo de desonra, mas um acidente próprio da vida econômica. Esse seria um dos motivos do empreendedorismo que caracterizaria o espírito da América. Essas ideias nunca foram dominantes na sociedade brasileira. Preferimos deixar empresas e famílias afogadas em dívidas, passando por sucessivos processos de negociação, que apenas jogam o problema para diante, bem ao gosto das nossas soluções para inglês ver.
O Brasil viveu uma das maiores crises econômicas de sua história entre 2014 e 2017. Apesar da gravidade da crise, em 2018 e 2019 o PIB foi muito baixo, evidenciando uma reação supreendentemente lenta. Parece inegável que a inexistência de instrumentos eficientes para enfrentar a crise das empresas e das famílias contribuiu de forma relevante para essa fragilidade. Afinal, sem aumento da taxa de investimento e de consumo, é impossível a recuperação da economia. E empresas endividadas não têm capacidade de investimento; e famílias endividadas reduzem o consumo.
Diante da covid-19, é certo que famílias perderão renda e que empresas enfrentarão sérias dificuldades. Por isso, é fundamental criar instrumentos eficientes para lidar com a crise das empresas e das famílias para conferir resiliência à economia brasileira. Esse esforço não exige apenas mudanças legislativas. Essas, a rigor, são as menos importantes, ao contrário da convicção comum em nosso país de que a mudança da lei é a panaceia para todos os problemas. É preciso que ganhe espaço no Brasil a cultura de que a incapacidade de pagar a integralidade das dívidas é um acidente econômico e de que é crucial permitir que empresas e famílias comecem de novo para reiniciar o ciclo da economia.
Há estudos que demonstram que mais de 60% das famílias brasileiras não tem capacidade de honrar suas dívidas. Apesar disso, não existe na lei nenhum instrumento que permita às famílias reestruturarem suas dívidas. Elas dependem da boa vontade dos credores que, por vezes, lançam programas de desconto. É preciso, com urgência, implantar um instituto análogo ao da falência da pessoa física, presente na lei americana. Nesse sentido, é o Projeto de Lei 3.515/2015. Com alguns aprimoramentos, a aprovação desse projeto de lei seria de grande importância.
Quanto à recuperação das empresas, é necessário um conjunto coordenado de iniciativas. No campo do mercado financeiro, há muito a fazer. Durante a crise, os bancos tendem a restringir o crédito em vista do aumento do risco de não pagamento, o que acaba por agravar a crise. É fundamental, portanto, que o Estado brasileiro tome medidas ativas no sentido de fomentar a concessão do crédito. Dentre elas: 1- o Tesouro garantir o adimplemento dos créditos concedidos a empresas em dificuldades; 2- a previsão de incentivos tributários para que os bancos concedam créditos a empresas em dificuldades (v.g., as perdas decorrentes de eventuais inadimplementos serem deduzidas numa taxa maior para a apuração dos tributos incidentes sobre o lucro); 3- o Banco Central modificar o regime regulatório para, por exemplo, flexibilizar as regras sobre provisão no caso de atrasos de pagamento, liberar depósito compulsório condicionado à concessão de créditos; 4- o incentivo a que fundos especializados atuem no financiamento de empresas em dificuldades.
O TCU e outros órgãos de controle devem compreender que as decisões de reestruturação de dívida, envolvendo descontos (os chamados haircuts) ou conversão em capital, são muitas vezes tomadas no melhor interesse do próprio credor, pois maximizam a possibilidade de recuperação do crédito. Dessa forma, não devem procurar responsabilizar os gestores das instituições que tomam esse tipo de decisão empresarial.
Quanto a medidas legislativas, podem ser destacadas: 1- aprovação de lei para cuidar, de forma simplificada, da recuperação e falência das micro e pequenas empresas; 2- aprovação de emendas pontuais na lei de falência e recuperação para cuidar - do financiamento e do investimento em empresas em processo de recuperação; das garantias voltadas ao financiamento de capital de giro, com a adequação do regime da cessão fiduciária de créditos à necessidade de a empresa ter acesso a receitas mínimas para assegurar a continuidade de suas atividades; e da possibilidade de os credores aprovarem planos de recuperação contra a vontade do sócio ou do acionista.
Não se recomenda a aprovação de uma reforma ampla da lei de falências e de recuperação num momento de crise, já caracterizado por grande instabilidade. A despeito do esforço de muitos, o projeto em trâmite no Congresso Nacional a esse respeito não oferece soluções satisfatórias para os pontos antes destacados. Quanto ao financiamento e ao investimento, o projeto deixa de adotar medidas necessárias para conferir segurança jurídica aos investidores, afastando-se da experiência já bem testada na realidade norte-americana (v.g, mootness doctrine, prioridade ao crédito novo, possibilidade de compartilhar garantias com créditos anteriores). Nesse campo, o que já não funciona bem na lei atual ficaria ainda pior.
Toda reestruturação de dívidas impõe sacrifícios ao conjunto dos agentes econômicos - sócios, trabalhadores, credores, consumidores. A concretização realista, célere e proporcional dessas perdas é fundamental para permitir o fresh start da empresa ou do consumidor. Por isso, as soluções baseadas em haircut e em conversões de dívida em capital precisam ser aplicadas com mais frequência na realidade brasileira, pois, muitas vezes, são as únicas capazes de solucionar o endividamento de empresas e das famílias de forma estruturada.
A ideia de que mais vale conferir a um homem honesto uma segunda chance do que mantê-lo afogado em dívidas deve iluminar as ações da sociedade brasileira, num momento em que a crise econômica promete ser disruptiva das cadeias de produção e do consumo. A não ser assim, o prognóstico da recuperação da economia após a crise da covid-19 ficará muito aquém das exigências da sociedade.
Eduardo Secchi Munhoz é professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.