Valor Econômico, v. 20, n. 4980, 14/04/2020. Opinião, p. A13
O presidente e o herói nacional
Maria Clara R. M. do Prado
Entre todas as declarações e trapalhadas protagonizadas pelo presidente Jair Bolsonaro desde a chegada do coronavírus ao Brasil, sobressai sem paralelos a observação feita no dia 26 de março. Ao comentar que a complexidade física do brasileiro carece de estudos, ele esclareceu: “ele não pega nada, o cara pula ali no esgoto, sai, mergulha, e não acontece nada com ele”.
O presidente deu ares de herói nacional ao brasileiro pobre, que mora mal, que não tem estudos e vive de biscate, aquele que chafurdeia na lama suja, em meio a todo tipo de resíduos, e sai incólume, com a saúde fortalecida.
O herói de Bolsonaro é falso, personagem equivocado de um enredo ruim.
A lamentável menção aos que não têm alternativa senão a de conviver com o esgoto é cruel e desrespeitosa com milhões de pessoas que moram em condições precárias de higiene e cujo número só tem aumentado ao longo dos anos. As 3.348 favelas em todo o país contabilizadas em 1996 expandiram-se para 6.329 (censo de 2010), uma estatística que não engloba as comunidades faveladas urbanizadas, ou seja, aquelas que dispõem de estruturas de água, esgoto, drenagem e coleta de lixo.
Os 11,4 milhões de brasileiros em moradias desprovidas de serviços sanitários básicos são os mais vulneráveis à contaminação da covid-19. Também serão os mais atingidos pela recessão econômica que se avizinha.
Bolsonaro usa a imagem do falso herói como uma espécie de bengala. Acha, na certa, que o ajuda no discurso de negar a gravidade da pandemia e no comportamento irresponsável de se misturar a delirantes fans pelas ruas, como se as recomendações das autoridades sanitárias fossem tema de campanha eleitoral. Mais recentemente, resolveu clamar pelo direito constitucional de ir e vir em uma retórica apelativa e totalmente fora do contexto da realidade em que se vive.
Orgulhoso de suas façanhas, o presidente não dá sinais de recuar. Aposta no caos econômico como se fosse seu grande aliado político, mas os brasileiros não são loucos. É clara a percepção do forte risco de o país caminhar para uma catástrofe, absurdamente estimulada pelo próprio presidente da República. Se acontecer o pior do pior, com certeza não poderá responsabilizar somente o vírus por isso.
O argumento de que as pessoas precisam sair às ruas para trabalhar, garantir o alimento do dia-a-dia e movimentar a economia enquanto a pandemia avança não resiste à nenhuma avaliação técnica e peca pela falta de entendimento da circunstância.
Garantir a renda dos mais pobres e estimular a retomada das atividades quando a economia acena cair em profunda recessão é papel do Estado e não do mercado, atingido pela inesperada ruptura das cadeias produtivas. Em momentos de vasta incerteza o dinheiro para de circular e as relações contratuais se esgarçam: fulano deixa de pagar beltrano que fica inadimplente com ciclano e por aí vai. Um ciclo vicioso de defaults se instala e só o governo federal, com a prerrogativa da emissão monetária e da emissão de dívida soberana, tem condições de amenizar o impacto do desastre.
Alguns comparam o quadro atual com a grande depressão de 1929/1933. De fato, há semelhanças no potencial de estragos financeiros, econômicos e nas relações interpessoais e contratuais, porém, diferentemente daquele período, enfrenta-se hoje algo desconhecido, invisível a olho nu e letal.
Já se provou, na depressão, a eficácia do investimento maciço em obras públicas de mão de obra intensiva, a forma mais básica e elementar de reativar a economia, à semelhança do que fez o governo dos Estados Unidos na crise de 30, em consonância com as propostas do economista inglês Maynard Keynes.
Mas o ataque de um vírus de alta capacidade de contágio, contra o qual não há remédios nem vacina, exclui por si qualquer possibilidade dos empregos voltarem rapidamente à normalidade. Sem vida, não há trabalhadores. É justamente este relevante detalhe, cuja compreensão parece escapar ao presidente Bolsonaro, que torna a era da covid-19 tão assustadoramente inescrutável.
Não se conhece o tamanho do buraco. As projeções de queda do PIB brasileiro têm variado de forma assombrosa, entre algo em torno de 2% até 7% ou 8% para 2020. São por enquanto chutes dado que ninguém tem condições de prever hoje quão devastadora será a crise.
Recorde-se que a covid-19 pegou a economia brasileira justo no momento em que os dados apontavam para uma melhoria depois de três anos de sofrível desempenho sem que o PIB acumulado no período tenha sido suficiente para compensar as recessões de 2015 (queda de 3,8%) e de 2016 (queda de 3,6%).
O único setor com o qual se poderá contar no médio prazo é o agropecuário, com a vantagem de responder por boa parte da balança comercial do país. Isso, é claro, a depender da troca de farpas com os chineses.
A indústria em geral deve sofrer forte retrocesso. Já vinha produzindo bem abaixo do nível registrado há sete anos. O setor de serviços, o m imediatamente atingido pela crise do vírus, pode demorar para recompor o fluxo que move as diversas atividades. E não há dúvida de que o desemprego crescerá nas zonas urbanas.
Quantidades e prazos são inimagináveis. O comportamento da doença é desconhecido - nem há certeza de que os recuperados estejam a salvo de uma recaída - além de que a indisciplina dos brasileiros com respeito ao isolamento social amplia o prazo provável para a retomada econômica. O pico da contaminação, como se sabe, ainda está por vir.
O herói de Bolsonaro, se conseguir sobreviver ao vírus, terá de enfrentar uma vida ainda mais dura pela frente. A crise da covid-19 veio colocar a nu a pérfida realidade histórica da sociedade brasileira.
Maria Clara R. M. do Prado, jornalista, é sócia diretora da Cin - Comunicação Inteligente e autora do livro “A Real História do Real”. Escreve mensalmente às terças-feiras. E-mail: mclaraprado@terra.com.br