Valor Econômico, v. 20, n. 4980, 14/04/2020. Empresas, p. B4

CVM investiga ‘insider trading’ na Qualicorp

Juliana Schincariol


A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) acusa a diretora de relações com investidores da gestora de planos de saúde Qualicorp, Grace Tourinho, e seu marido José Tourinho de terem negociado ações da companhia de posse de informações privilegiadas em 2018.

Segundo o processo sancionador obtido pelo Valor, o casal teria vendido ações da empresa pertencentes ao seu portfólio familiar dias antes de ser divulgado contrato de remuneração do fundador da Qualicorp, José Seripieri Filho. O contrato, que previa a permanência do fundador na companhia por determinado tempo e o impedia de criar negócios que concorressem com a Qualicorp, foi mal recebido pelo mercado e as ações, então, caíram.

Segundo a área técnica da CVM, Grace e José Tourinho venderam ações de sua carteira pessoal de posse de informação relevante ainda não disponibilizada ao público. Desse modo, o casal teria evitado uma perda nos seus investimentos. A defesa dos acusados alega que a diretora não teve acesso a qualquer dado que pudesse lhe indicar as tratativas com o presidente da Qualicorp até 21 de setembro de 2018, quando foi informada dos termos gerais do contrato. As vendas das ações do casal correram em 18 e 19 de setembro, segundo os termos da acusação.

Em nota, Daniella Fragoso, sócia do escritório BMA e responsável pela defesa, disse que os papéis foram negociados antes do bloqueio de venda de ações por executivos da empresa, determinado em 20 de setembro de 2018 pelo presidente do conselho de administração. “Participaram das negociações divulgadas no fato relevante estritamente o conselho de administração e o CEO, motivo pelo qual não há que se falar em ‘insider trading’, aguardando-se o julgamento e consequente arquivamento do processo”, diz Daniella.

O documento da CVM, obtido pelo Valor, não informa os valores negociados, mas deixa claro que a venda das ações dos Torinho foi na casa de “milhões” de reais. Em 1º de outubro de 2018, a Qualicorp informou ter feito acordo de R$ 150 milhões com seu fundador, para que Júnior, como é conhecido, permanecesse na empresa por pelo menos seis anos e sem abrir negócios concorrentes. Dias depois, o contrato foi revisto e Júnior comprometeu-se a reinvestir o dinheiro na empresa. Mas não evitou a abertura de processo sancionador na CVM. O regulador considerou o acordo lesivo à empresa e acusa o conselho de administração, incluindo Júnior, que era membro do colegiado. Ainda não há data para o provável julgamento deste processo.

O caso que envolve a diretora de RI foi aberto depois, em maio de 2019, e apenas Grace e seu marido são acusados. O presidente da CVM, Marcelo Barbosa, foi sorteado como relator e o caso pode ir a julgamento. Até lá pode ser apresentada proposta de acordo para encerrar o processo.

Questionada pela CVM sobre os trâmites que envolveram o acordo com Júnior, a Qualicorp forneceu informações à área técnica da CVM. A diretora de RI, segundo a empresa, foi informada em 21 de setembro dos termos gerais do “contrato de retenção” de Júnior, aprovado pelo conselho de administração. Também foi informada que a Qualicorp estudava a possibilidade de apresentar proposta a Júnior desde março de 2018.

“A despeito de não pertencer ao conselho de administração, percebe-se que a sra. Grace Tourinho teve participação no progresso dos trabalhos”, diz a acusação elaborada pela Superintendência de Relações com o Mercado (SMI). As operações foram realizadas por José Tourinho em nome próprio e também da esposa. A defesa do casal, apresentada em dezembro de 2019, alegou que a acusação utilizou “premissas equivocadas amparadas em fatos inverídicos e interpretações completamente forçadas e distorcidas dos depoimentos prestados” por Grace e José Tourinho sobre as operações.

A defesa disse ainda que José Tourinho é o principal responsável pela definição da estratégia de investimento da família, que optou por vender ações da Qualicorp, para comprar CCR. Também alegou no processo que as ordens de venda das ações foram graduais e até o início do período de bloqueio, em 20 de setembro, restaram ações da Qualicorp na carteira de Grace. E defenderam que caso se tratasse de operação com uso de informação privilegiada, José Tourinho “teria ordenado o quanto antes o encerramento da posição” em Qualicorp.

“Desfazer-se de mais de 70% da carteira de QUAL3 [ações mantidas há meses na carteira do casal] em apenas dois dias não sugere um comportamento de “operações graduais”, argumenta a acusação.

A área técnica da CVM também citou na acusação que a executiva foi entrevistada por uma das consultorias contratadas para assessorar o conselho sobre o contrato de retenção de Seripieri. Grace também fez, a pedido do conselho, uma análise sobre o efeito de eventual pagamento sobre o lucro líquido e a posição de caixa da companhia, apresentada em junho.

As operações de venda, segundo a SMI, foram iniciadas no mesmo dia em que o presidente do conselho de administração circulou um e-mail aos demais membros do colegiado (18 de setembro de 2018) em que dizia aguardar a “validação final” dos demais conselheiros para conclusão do processo com a proposta a Júnior. O fundador acabou deixando a companhia em setembro de 2019.