Título: `Sic Transit Gloria Mundi¿
Autor: Maria Clara L. Bingemer
Fonte: Jornal do Brasil, 12/12/2005, Outras Opiniões, p. A11

O episódio da cassação de José Dirceu, acontecido já há duas semanas, justamente no começo do tempo litúrgico do Advento, nos leva a uma profunda reflexão. Ninguém acreditava muito que acontecesse, mas aconteceu. José Dirceu foi cassado por ampla maioria de votos. O homem forte do governo Lula, o capitão do time governista, teve que sair de Brasília humilhado por uma cassação que ele próprio nomeou de ''degola'' e ''fuzilamento''.

Dirceu é o protagonista em negativo da crise do mensalão, instaurada quando Roberto Jefferson resolveu, há seis meses, abrir a boca e vomitar cobras e lagartos. A denúncia do esquema de corrupção que envolvia boa parte do PT e de outros partidos aliados à base governista começou a crescer ao ritmo de uma denúncia por dia. Perplexo, o povo brasileiro se perguntava se sobraria alguém. E, mais ainda, se o próprio presidente conseguiria ficar fora do imenso mar de lama que se espalhara sobre o Brasil. Um a um foram aparecendo os nomes dos implicados, e o de José Dirceu não tardou a engrossar a lista. As exigências de apuração até o fim, da transparência e da ética implacável para o partido que sempre levantou a bandeira da ética se sucediam.

No entanto, não se esperava unanimemente o desfecho que houve com José Dirceu. Sua biografia, sua estatura de homem público comprometido com a justiça, de líder da esquerda, de hábil político, pareciam imunizá-lo da cassação e de outras punições que pudessem ameaçar seus direitos políticos.

Havíamos esquecido, talvez, nós que vivemos o final da era Collor, o que sucedeu com este outro brasileiro, também poderoso, mas do lado diametralmente oposto ao de José Dirceu. Collor parecia nadar seguro em águas claras, fazendo e acontecendo, e vivendo em nababesco e escandaloso luxo. O céu ''collorido'' se toldou um pouco quando dona Rosane apareceu envolvida até o pescoço em um dinheiroduto aberto para Canapi, sua cidade natal na República das Alagoas. Mas a coisa parecia controlada. Nada parecia ameaçar o presidente até que seu irmão Pedro resolveu falar.

A partir daí precipitaram-se os acontecimentos, mediados inclusive pela estranha morte de Pedro, até chegar o momento do ''impeachment''. Belo momento político aquele, mas que melancólico retrato do que é o ser humano e até onde pode chegar em sua infidelidade e covardia. Os mesmos que um dia antes ladeavam Collor e o bajulavam de maneira asquerosa foram os que despudoradamente votaram a favor de seu impeachment. Lembro-me ainda de que alguns ''invocavam'' a mãe, a tia, a filha, a cidade onde moravam para dar solenidade ao seu voto.

Com José Dirceu aconteceu coisa parecida. Embora tenha recebido visitas de apoio de alguns parlamentares, inclusive do ex-presidente José Sarney, no momento decisivo seus amigos mais próximos o deixaram sozinho. Dirceu queixa-se amargamente de não haver recebido sequer um telefonema do presidente Lula, seu companheiro de tantos e tantos anos, que o nomeara como chefe da Casa Civil.

A vida é cruel, José Dirceu. E a política mais ainda. Implacavelmente, as pessoas têm objetivos a alcançar, metas a cumprir e não podem deter-se para ajudar os caídos à beira do caminho. O presidente Lula está a menos de um ano da reeleição. Precisa cuidar de sua imagem, de sua campanha. Não pode arriscar-se dando apoio explícito a um cassado. Assim também outros correligionários, amigos de toda vida e que desapareceram na última hora, quando o terror tocou.

O episódio José Dirceu ensina a todo brasileiro, neste Advento em que o mundo inteiro se prepara para celebrar o Natal do Senhor, que a glória é frívola e fugaz. Não se entrega a ninguém de forma definitiva e se diverte em brincar com as vaidades humanas, alçando-as e derrubando-as depois da forma mais cruel e impiedosa. Por outro lado, a cassação de José Dirceu levanta dúvidas quanto ao procedimento do processo político em si do ponto de vista jurídico. Os poderes Judiciário e o Executivo, mais uma vez, estão diante de interrogações sobre se não extrapolaram, um e outro, um ou outro, de suas alçadas.

Em todo caso, José Dirceu está inelegível até 2015. Naquela altura, terá setenta anos. Muito tarde, certamente, para voltar ao cenário político que é sua grande paixão. Restar-lhe-á a costura dos bastidores. E o presidente Lula terá de fazer campanha sem seu fiel escudeiro. O panorama político, na virada de 2005 para 2006, ainda promete muitas novidades. Deixam, no entanto, os fatos recentes, uma poderosa lição: ninguém é inatingível, nem tão grande e poderoso que não possa cair. O único que o é não usou de seu poder, mas dele abriu mão, nascendo menino e pobre em um presépio, submetido à lei. Que a luz que irradia de Belém possa iluminar o sombrio cenário político do Brasil nesta segunda metade de 2005.

Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.