Valor Econômico, v. 20,
n. 4980, 14/04/2020. Legislação & Tributos, p. E1
Empresas conseguem
liberar dinheiro e depósitos judiciais
Joice Bacelo
Laura Ignacio
Empresas começam a obter na Justiça, por causa da pandemia da covid-19, o
direito de trocar dinheiro penhorado ou depósito judicial por seguro, fiança
bancária ou outros bens em discussões com a Fazenda Nacional. Nas execuções
fiscais, as empresas são obrigadas a garantir o pagamento ao Fisco em caso de
derrota.
Há pelo menos três
decisões de segunda instância favoráveis aos contribuintes. Uma delas do
Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região, em São Paulo, e duas do TRF da 4ª
Região, no sul do país - uma pela liberação de penhora, via Bacen Jud, sem que
a empresa apresentasse garantia em troca.
“Essas decisões mitigam
uma posição mais tradicional dos tribunais, que prevalecia antes da pandemia,
de que o dinheiro precede a todas as garantias”, diz o advogado Maurício Faro,
do escritório BMA Advogados.
Há jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça (STJ), favorável à União, sobre o assunto. O
entendimento dos ministros, firmado antes da do coronavírus, é o de que a
Lei de Execuções Fiscais estabelece uma lista com a ordem de preferência das
garantias, onde o dinheiro aparece em primeiro lugar. Por isso, até a situação
gerada pela pandemia, eram raríssimas as decisões que permitiam às empresas
fazer a substituição.
Nos processos, a Fazenda
Nacional afirma que o levantamento de depósito só pode ser feito após
decisão final do Judiciário. Além disso, desde 1998, com a edição da Lei nº
9.703, os valores dos depósitos judiciais passaram a ficar disponíveis para a União
na Conta Única do Tesouro Nacional e são considerados como parte do orçamento.
“É preciso, então,
equilibrar dois pratos nessa questão. Um deles é que esses depósitos estão
contemplados no orçamento votado pelo Congresso e que está sendo executado e o
outro é a necessidade das empresas de alimentarem o seu fluxo de caixa para,
muitas vezes, conseguirem manter a atividade”, diz Leonel Pittzer, sócio do Fux
Advogados.
Em uma das decisões que
favorecem o contribuinte, o desembargador Cotrim Guimarães, da 2ª Turma do TRF
da 3ª Região, destaca que “é público e notório que as empresas estão na
iminência de sofrer grande dificuldade econômica diante da pandemia que se acelera
entre nós, isso porque é presumível que terão perdas significavas de receitas
e, em sentido contrário, aumento de despesas inesperadas para se manter,
minimamente, em atividade”.
Ele aplicou o princípio
da menor onerosidade, o dispositivo do Código de Processo Civil (CPC) que
equipara dinheiro à fiança bancária e ao seguro garantia, e considerou também
que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) passou a “possibilitar às empresas
substituir os depósitos recursais e penhoras sobre dinheiro por fiança bancária
ou seguro garantia” (processo nº 5003034-09.2019.4.03.0000).
No dia 27 de março, em
meio à situação gerada pelo coronavírus, os conselheiros do CNJ se manifestaram
sobre o tema ao julgarem uma resolução do Conselho Superior da Justiça do
Trabalho que dificultava o uso desses instrumentos nos processos judiciais. Eles
consideraram que tal previsão é ilegal porque o CPC - como afirma o
desembargador do TRF da 3ª Região - equipara o seguro a outras formas de
garantia.
“A reconsideração se
mostrou razoável no sentido de ser uma permissão em caráter excepcional”,
afirma o advogado que representa a empresa no TRF, Sandro Machado dos Reis, do
Bichara Advogados. “Além disso, o seguro oferecido garante o pagamento do valor
em discussão e um acréscimo de 30%, conforme exigência da PGF”,
acrescenta. Por meio da Portaria nº 440, de 2016, a Procuradoria Geral Federal
(PGF) impõe requisitos para a troca de garantia em execução fiscal da União. A
Fazenda já recorreu.
A decisão do CNJ vem
servindo como impulso para que as empresas apresentem os pedidos ao
Judiciário. E as solicitações têm sido até mais ousadas. Por exemplo, para que
a dívida passe a ser garantida por bem imóvel ou mesmo para que não haja
nenhuma garantia.
Já há decisões do TRF da
4ª Região também nesse sentido. Em uma delas, o desembargador atendeu pedido de
uma empresa do interior do
Paraná, a Comercial
Matelândia, que atua no comércio de equipamentos e produtos para a construção,
para liberar valores penhorados via Bacen Jud, e em troca apresentar um imóvel
como garantia à execução fiscal.
Ao julgar o caso, o
desembargador Alexandre Rossato da Silva Ávila também levou em conta a crise
gerada pela pandemia. “Diante deste contexto de grave crise social e
econômica, impõe-se a flexibilização da uniformidade da jurisprudência,
conferindo à proteção da confiança e à segurança jurídica interpretação que
pondere os interesses do devedor e os da Fazenda Pública”, afirma na decisão
(processo nº 5012221-77.2020.4.04.0000).
Em uma outra decisão do
TRF da 4ª Região, também sobre valores bloqueados via Bacen Jud, a Hidrautini,
empresa de automação hidráulica do Rio Grande do Sul, conseguiu a liberação dos
valores sem oferecer nada em troca (processo nº 5012 975-19.2020.4.04.0000).
O desembargador
Francisco Donizete Gomes levou em conta a dificuldade de operacionalização
do seguro e da fiança “em meio à pandemia que assola o país”. “Com isso não se
quer dizer que a execução não terá prosseguimento, com a busca de bens para saldar
a dívida fiscal que titulariza a executada, mas sim que, levando-se em
consideração os interesses das partes, e restando comprovado que as verbas
desbloqueadas são dirigidas ao pagamento de salários, sobrepõe-se o princípio
da menor onerosidade”, frisa na decisão.
O advogado Eduardo
Kiralyhegy, sócio do escritório NMK Advogados, chama a atenção, no entanto, que
os magistrados têm levado em conta as situações específicas de cada
contribuinte. “O Judiciário está cada vez mais refratário em conceder
decisões que sejam uma carta branca para todos”, diz.
Já a advogada Priscila
Faricelli, do Demarest Advogados, alerta que é mais difícil obter a liberação
de valores em depósito judicial do que os penhorados. “No depósito, o dinheiro
é receita pública porque está na conta do Tesouro”, afirma. Outro desafio,
segundo ela, liberação dos depósitos porque não há mais acesso a alvarás
físicos. “Deveria haver uma mudança de regra dos bancos para agilizar isso
on-line.”
Por meio de nota, a
Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) diz que “o esforço da União
Federal no combate à pandemia, e os custos decorrentes dessa empreitada,
não justificam que se defira a pretensão do contribuinte, nada obstante as
noticiadas dificuldades econômicas pelas quais passam as empresas”.
O órgão também contesta
o uso da recente orientação do CNJ sobre o uso do seguro garantia e da fiança
bancária em substituição ao depósito recursal. Argumenta que a medida é
válida especificamente para a execução trabalhista. “Os depósitos recursais
vinculados à Justiça do Trabalho não se submetem ao rito da Lei 9.703, de modo
que permanecem imobilizados em conta vinculada ao juízo e corrigida pela
poupança”, diz a nota.
A Advocacia-Geral da
União (AGU), também por nota, disse que "os pedidos de
postergação/suspensão de atos constritivos/Bacenjud e substituição de penhora
em dinheiro por seguro garantia, tendo como justificativa a crise causada pela
pandemia da covid-19, devem ser combatidos em razão do efeito multiplicador em
todo o país", pois "agora mais do que nunca é preciso que os
governos tenham recursos para realizar as despesas necessárias".
O órgão defende que as
normas invocadas pelos contribuintes nos processos são genéricas e não
justificam as medidas requeridas. Diz também que já obteve ao menos uma decisão
favorável em execução fiscal (processo nº 0027324-63.2018.4.02.5101), da
4ª Vara Federal de Execução Fiscal do Rio de Janeiro.